A Gênese Biopolítica do Domínio: Uma Crítica Anarquista

A Biopolítica, na esteira da análise foucaultiana, é o conceito-chave para entender como o poder opera na modernidade tardia. Em termos simples, ela representa a transformação na maneira como as estruturas de domínio controlam a existência humana. Antes, o poder do rei ou do Estado era exercido fundamentalmente pelo direito de tirar a vida — a pena de morte, a guerra, o castigo soberano. Foucault chamou isso de poder de "fazer morrer ou deixar viver".

A Biopolítica, porém, inverte essa lógica. O foco do poder não é mais a morte, mas a gestão da vida. O Estado e o Capital passam a administrar e otimizar a vida das pessoas em escala massiva, tratando a população como uma espécie biológica a ser regulada. O poder agora se define pelo direito de "fazer viver e deixar morrer". Ele se concentra em promover e prolongar a vida (através de políticas de saúde, natalidade, longevidade) apenas na medida em que essa vida é útil e produtiva, reservando o abandono ou a morte (o "deixar morrer") para aqueles que são considerados um risco, um custo ou um desvio. A vida biológica torna-se, assim, um objeto de cálculo e controle.

A Racionalidade Mercantil do Biopoder

Foucault identifica a origem dessa mutação na emergência da economia política e do mercado como instância de “veridicção” — o lugar onde a verdade do governo é testada. A arte de governar, antes fundada na legitimidade da soberania, passa a se medir pela eficácia econômica. O liberalismo, longe de significar um poder limitado, é o dispositivo que permite ao poder expandir-se de forma mais eficiente, disfarçado de autolimitação. “Não governar demais” é a forma mais sutil de governar tudo.

A economia política transforma o indivíduo em empresa, e a liberdade em ferramenta de gestão. O homo economicus é o produto acabado do biopoder: um sujeito que se autoexplora, que internaliza as métricas do mercado, que transforma a própria vida em capital humano. A liberdade deixa de ser um valor político e torna-se uma tecnologia de governo. É a servidão voluntária em sua forma mais sofisticada.

O Estado como Máquina de Gestão da Vida

O Estado moderno não governa mais apenas pela lei, mas pela norma. Ele não se impõe como um inimigo externo, mas como um gestor íntimo da existência. A saúde pública, a previdência, a segurança — todos os dispositivos biopolíticos — operam como máquinas de otimização. Administram o risco, quantificam o sofrimento, hierarquizam as vidas. A biopolítica é o poder que decide quais corpos merecem viver e quais podem ser descartados.

A pandemia revelou isso de forma brutal. As mortes nas periferias e nos asilos não foram acidentes, mas expressões de uma lógica de cálculo: a gestão diferencial do abandono. Aqui, a crítica de Achille Mbembe à necropolítica complementa Foucault — o biopoder, ao decidir quem deve viver, também define quem pode morrer.

A Fuga e a Resistência: A Vida que Escapa

Mas se o poder é produtivo, ele nunca é total. A vida sempre excede o controle. A resistência não é exterior ao poder; ela é imanente a ele. Foucault já dizia: onde há poder, há resistência. É nesse interstício que o pensamento anarquista reencontra sua força. Não se trata mais de sonhar com uma abolição do poder, mas de confrontar seus modos de sujeição — as formas pelas quais somos produzidos e administrados.

O anarquismo contemporâneo, informado por autores como Laclau, Mouffe e Espósito, entende a luta não como destruição do Estado, mas como sabotagem de suas lógicas. É o combate cotidiano contra o governo da vida — nas redes de apoio mútuo, nas práticas autônomas de cuidado, na recusa a ser gerido segundo métricas de produtividade e rentabilidade. É uma política da desobediência vital.

O Corpo, o Desejo e a Insurreição da Vida

Deleuze e Guattari nos ajudam a ir além: o biopoder tenta codificar os fluxos do desejo, transformar a potência criativa da vida em força produtiva domesticada. Resistir é criar linhas de fuga, liberar fluxos, construir Corpos sem Órgãos — modos de existência que recusam a forma e o uso que o poder quer impor. A insurreição não é só contra o Estado, mas contra o sujeito que o Estado fabrica.

O biopoder não é neutro. Ele é generificado, racializado, classista. Define quais vidas são vivíveis e quais não merecem luto. A luta anarquista contemporânea precisa encarar isso de frente — não há liberdade enquanto houver vidas consideradas descartáveis. A destruição da autoridade passa também pela desnaturalização do gênero, da raça e da sexualidade como tecnologias de governo.

A tarefa anarquista hoje é produzir formas de vida ingovernáveis — não no sentido de caóticas, mas no de inapropriáveis. A autogestão, aqui, não é um modelo, mas um gesto ético: a recusa de deixar que a vida seja calculada. É a recusa de ser administrado, de medir a própria existência em métricas de desempenho. É viver como quem sabota o governo, não como quem espera sua queda.


A biopolítica é o campo de batalha final da modernidade. A questão não é mais “contra o que lutamos?”, mas “como queremos viver?”. A resposta anarquista é simples e impossível: viver de um modo que o poder não saiba administrar. Criar zonas autônomas, afetivas, poéticas e materiais onde a vida escape do cálculo. Fazer do corpo, do desejo e da comunidade o terreno da insurreição.


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