A Crítica do Século XX e os Novos Commons

A falência absoluta dos projetos de esquerda do século XX — do comunismo estatal ao keynesianismo, passando pela democracia local comunitária — não foi um acidente histórico. Ela se explica pela contradição estrutural entre hierarquia e emancipação. O comunismo degenerou em capitalismo de Estado; o welfare state dependia da força fiscal de nações que foram desmanteladas pelo mercado global; e a democracia local, embora bem-intencionada, revelou-se impotente diante da escala planetária do capital.

A Ilusão da Democracia Local

A promessa da autogestão comunitária enfrenta um limite intransponível: o capitalismo opera em circuitos globais. Crises ecológicas, colapsos financeiros e enclosures biogenéticos não podem ser enfrentados com assembleias de bairro ou hortas comunitárias isoladas. A retórica do “faça você mesmo” ecológico — recicle, compre orgânicos, participe de cooperativas — não passa de uma individualização da resistência, alinhada à própria lógica neoliberal. O sistema transforma angústia coletiva em mercadoria: paga-se mais caro por um café “sustentável” e, em troca, adquire-se a ilusão de subversão.

Os Novos Commons e o Imperativo Internacionalista

O eixo do conflito contemporâneo está nos commons: ecossistemas, conhecimento, informação genética, espaços urbanos. São eles que sofrem cercamentos incessantes por empresas e Estados. A defesa anarquista dos commons não pode restringir-se a microgestões locais; ela exige redes transnacionais de contra-poder, federadas de baixo para cima, sem burocracias nem vanguardas.

Isso implica sindicatos globais capazes de paralisar fluxos financeiros, coletivos de cientistas e hackers sabotando monopólios de patentes, e redes de apoio mútuo que enfrentem fronteiras e mobilizem solidariedade direta. Não se trata de utopia, mas de necessidade estratégica. O capital atua em escala global, logo a autogestão também precisa escalar, sem perder a horizontalidade.

A Liberdade Ilusória: Unfreedom como Norma

Mais perfidamente, o capitalismo neoliberal impõe uma unfreedom disfarçada de liberdade. Nos regimes "liberais", a repressão não é ostensiva, mas internalizada: a ilusão de escolha entre variantes de um mesmo produto oculta a ausência de agência que perimitam intervir nas estruturas que definem o campo dessas escolhas, ditados por tratados opacos como o TISA. O anarquismo denuncia essa liberdade negativa, mera ausência de interferência visível, como antítese da liberdade positiva: a capacidade coletiva de autodeterminação, sem mediações estatais ou corporativas. Verdadeira liberdade não é eleger representantes ou marcas; é abolir senhores, permitindo que comunidades, em escalas múltiplas, gerenciem seus commons através de deliberação direta e ação autônoma.

A liberdade positiva — autodeterminação coletiva sem mediações estatais ou corporativas — é incompatível com esse arranjo. Não basta não ser coagido; é preciso abolir os senhores que moldam os limites do possível.

O capitalismo já não precisa da democracia liberal para operar. As respostas locais são insuficientes, e o pessimismo, um luxo reacionário. A tarefa anarquista hoje é clara: forjar instituições duradouras de auto-governo federadas em escala planetária.

Essa luta exige ação direta, sabotagem informacional, solidariedade internacional e construção de formas de vida que escapem à mercantilização. Não há meio-termo. A oportunidade não é parcial; é absoluta, demandando nada menos que a abolição total da dominação.


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