A Psicopolítica e a Servidão Voluntária: Notas para uma Resistência Anarquista
O conceito de psicopolítica, desenvolvido por Byung-Chul Han – notadamente em sua obra homônima Psicopolítica: Neoliberalismo e Novas Técnicas de Poder – não é apenas uma atualização da biopolítica foucaultiana para a era neoliberal. É a descrição precisa do mecanismo de controle mais eficaz já concebido: aquele em que o indivíduo é simultaneamente carrasco e vítima, vigilante e prisioneiro. Para uma perspectiva anarquista, esta análise não é apenas pertinente; é um chamado à desobediência e à ação direta.
A Psicopolítica do 'Podes': A Culpa Individual como Mecanismo de Controle
Han identifica com precisão a mutação do poder disciplinar para o poder de rendimento. Já não somos sujeitos rigidamente submetidos a um "deves" externo, como no panóptico arquitetônico de Bentham, mas projetos empresariais de nós mesmos, assombrados por um "podes" ilimitado. Esta "liberdade" aparente – a de "poder fazer tudo" – é, na realidade, a forma mais insidiosa de coerção. O sistema não precisa mais de muros visíveis ou ameaças explícitas; precisa que internalizemos a lógica da competição, da auto-otimização e, crucialmente, da culpa individual pelo fracasso. A exploração já não é primariamente uma relação dialética entre classes, mas uma patologia da psique: a autoexploração.
Esta é a consumação do individualismo burguês, elevado à sua potência máxima. A "liberdade" proclamada pelo neoliberalismo é, como Han (e Marx antes dele) aponta, a liberdade de circulação e acumulação do capital, não a emancipação do indivíduo. A comunidade é dissolvida no átomo social isolado, condenado a competir contra todos os outros. Isso torna impossível a solidariedade de classe e a ação coletiva – os pilares tradicionais da resistência anticapitalista e anarquista.
O panóptico digital é a metáfora do nosso tempo. No panóptico de Foucault, o prisioneiro, sob a incerteza da vigilância, internaliza o controle. No panóptico digital, a vigilância se dá por consentimento. Nós produzimos voluntariamente os dados que nos modelam e controlam. Somos o olho que tudo vê (o Big Data) e o corpo vigiado (o eu mercantilizado). As redes sociais, os dispositivos "inteligentes" e a economia dos likes não são ferramentas de comunicação libertárias; são máquinas de subjetivação, moldando desejos, comportamentos e realidades para servir à acumulação de capital e à manutenção da servidão voluntária. A transparência total que celebramos é a condição de possibilidade para a nossa total captura e mercantilização.
A Servidão Voluntária e o Dilema da Psicopolítica
O conceito de psicopolítica ressoa profundamente com a noção clássica de Servidão Voluntária (de La Boétie) – a questão de por que as pessoas não apenas aceitam a dominação, mas a desejam e a sustentam. A tese de Han sugere que o neoliberalismo resolveu este dilema de forma brilhante: a servidão é agora mascarada como liberdade radical e empreendedorismo de si. Se o fracasso é visto como uma falha pessoal e não sistêmica, a necessidade de rebelião desaparece; o indivíduo culpa a si mesmo, não o sistema.
A revolução, neste contexto, parece impossível porque a fronteira entre opressor e oprimido se desfez em uma luta intrassubjetiva: somos amo e escravo em uma só carne. O modo de produção imaterial da informação e dos dados (a Datacracia) torna as classes sociais invisíveis ao olho tradicional, desarmando o motor da luta. A ausência de coerção física explícita gera a ilusão de que não há nada contra o que lutar.
Para além da Desesperança: A Resistência como Ato de Opacidade
No entanto, a análise de Han não é um beco sem saída nihilista. A sua pista de esperança é profundamente anárquica. Se o poder psicopolítico depende da nossa colaboração ativa (a servidão voluntária), então a sua fraqueza reside na nossa capacidade de retirar esse consentimento.
Aqui, a tradição anarquista dialoga com Han e exige um passo além. Não se trata apenas de uma recusa individual – "fazer-se de tonto", como ele sugere, evocando o Bartleby de Deleuze, a atitude de preferir não o fazer. Trata-se de uma prática política de contra-condutividade, nos termos de Foucault. Precisamos de sabotar os fluxos de dados que nos constituem como sujeitos de rendimento. Devemos nos tornar opacos em um regime que exige transparência total.
Isso se traduz em táticas de resistência:
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Sabotagem dos Perfis e Algoritmos: Não apenas se desconectar, mas corromper os algoritmos com dados falsos, inconsistências e ruído. Recusar-se a criar um "eu" digital coerente, previsível e mercantilizável. A opacidade radical deve ser nossa primeira linha de defesa digital.
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Criação de Zonas de Fuga e Criptocommuns: Construir redes de comunicação alternativas, criptografadas e descentralizadas que não possam ser capturadas pela lógica da vigilância capitalista. Os commons digitais devem ser espaços de ajuda mútua e liberdade negativa, focados na privacidade como ferramenta de ação política.
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A Reivindicação do Acontecimento: Han está certo: o "acontecimento" é o que escapa ao Big Data. A verdadeira política revolucionária é a que cria acontecimentos imprevisíveis – greves selvagens, motins, ocupações, formas de vida inclassificáveis – que rompem a previsibilidade estatística sobre a qual o controle psicopolítico depende.
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Uma Nova Ética da Comunidade: A liberdade real, como Han lembra, não é isolamento, mas estar "entre amigos", em uma relação de não-competição. Precisamos reconstruir laços sociais não mediados pela lógica do rendimento e do isolamento. A comunidade anárquica é aquela que se funda na ajuda mútua e na recusa coletiva da lógica do empreendedor de si, combatendo a alienação do self.
A psicopolítica é o estágio mais sofisticado do capitalismo, aquele em que a revolução parece extinta porque o poder já não está "lá fora", mas dentro de nossas cabeças. Mas é precisamente aí que a batalha deve ser travada. A recusa de cooperar não é mais apenas um gesto de negação; é um ato de criação. Ao nos tornarmos ininteligíveis para a máquina, abrimos espaço para nos tornarmos algo diferente do que ela ordena que sejamos. A tarefa do anarquismo hoje não é tomar o poder estatal, mas dissolver o poder internalizado, começando pelo poder que exercemos sobre nós mesmos em nome do capital. É uma luta pela autonomia psíquica, travada no território mais íntimo e, ao mesmo tempo, mais politizado: a nossa própria psique.
A questão, como Han nos deixa, não é se podemos nos libertar da psicopolítica, mas se queremos pagar o preço de parar de clicar, de parar de nos autoexplorar e de nos tornarmos coletivamente opacos.