Ideologia: A Máquina de Ilusões do Capital

A ideologia — nesse léxico específico — não é uma simples coleção de ideias ou um sistema neutro de crenças. Ela é um aparato, um dispositivo de dominação simbólica e material. Uma máquina engenhosa criada para garantir que o explorado não apenas aceite sua exploração, mas a defenda como se fosse parte da ordem natural das coisas. É, nesse sentido, o ferramental da burguesia para mascarar a realidade da luta de classes.

Essa definição, é claro, se insere dentro de um vocabulário crítico. Em outros campos — da filosofia à sociologia — "ideologia" pode adquirir significados distintos, e isso não os torna necessariamente errados. Mas dentro deste dicionário da crítica materialista, "ideologia" é o véu que oculta o real, a cortina de fumaça que impede a consciência de classe de emergir com força.

A ideologia funciona como um espelho parabólico — uma superfície que, ao invés de refletir a realidade tal como é, a distorce conforme a posição do observador. Se você se move diante desse espelho, a imagem muda, se estica, se encolhe, se curva. Um rosto sereno pode parecer monstruoso, um corpo firme pode se tornar disforme.

Essa metáfora é forte pois, assim como o espelho parabólico distorce sem que percebamos imediatamente o artifício, crescemos olhando o mundo através dele — e, como no Mito da Caverna de Platão, passamos a acreditar que essas sombras e distorções são a própria realidade. A ideologia nos ensina a ver o mundo torto e chama isso de equilíbrio. Desde cedo, internalizamos essas imagens deformadas como verdades absolutas: que a miséria é inevitável, que a competição é natural, que a exploração é merecida.

No espelho parabólico da ideologia capitalista, a miséria parece merecida, a riqueza parece conquista pessoal, e o sofrimento se torna sinal de fracasso individual — não de opressão coletiva. Essa distorção é calculada. Serve para desmobilizar, para atomizar, para evitar que vejamos que por trás das desigualdades está uma estrutura construída para manter o poder concentrado em poucas mãos.

O capitalismo se apresenta como o “fim da história”, o ápice inevitável da civilização. Um mundo onde a propriedade privada, a acumulação infinita de lucros e a exploração do trabalho são tratados como verdades eternas, como expressões da "natureza humana". Nos vendem a mentira de que sempre existiram patrões e empregados, ricos e pobres, como se fossem categorias naturais, e não construções históricas sustentadas pela violência.

Mas a história nos conta outra coisa. O capitalismo é jovem. Fruto recente de guerras, colonizações, genocídios e cercamentos. É um sistema artificial, sustentado pela força e disfarçado pela ideologia.

E como essa ideologia se sustenta? Por meio de um arsenal diversificado e cruel:

Racismo, essa ferramenta de divisão, cria hierarquias fictícias entre os trabalhadores, promovendo a superexploração de corpos racializados. Enquanto os oprimidos se enfrentam entre si, disputando migalhas, a burguesia segue intocada em seus banquetes.

Machismo, instrumento milenar de opressão, mantém as mulheres na base da pirâmide social. A naturalização do trabalho doméstico gratuito e da violência de gênero serve para manter a estrutura produtiva e a fragmentação da força revolucionária.

Religião instrumentalizada, não como fé íntima e libertadora, mas como dogma imposto, oferece consolo em vez de transformação. Ela promete o paraíso após a morte, enquanto os capitalistas vivem o seu paraíso agora, explorando cada minuto da vida alheia.

A cultura de massa, por sua vez, é um campo fértil para a reprodução dessa ideologia. Os filmes-catástrofe de Hollywood, por exemplo, nos vendem a ideia de que é mais fácil o planeta ser destruído por meteoros, zumbis ou invasões alienígenas do que o capitalismo acabar. A estrutura social raramente é questionada — e quando é, surge como pano de fundo para o retorno à mesma ordem após o caos. Não por acaso, nas palavras de Fredric Jameson, “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.”

Na música, quantos hinos do consumo, da ostentação e da masculinidade violenta reforçam valores capitalistas e patriarcais, apresentando o acúmulo de riqueza como sinônimo de sucesso e poder? Enquanto isso, a rebeldia é domesticada, transformada em produto vendável, esvaziada de seu conteúdo transformador.

A crítica se torna estética, e a opressão, um cenário interessante — não uma estrutura a ser derrubada.

A ideologia também se reforça por meio de campanhas de distração moral e política:

A guerra às drogas criminaliza a pobreza, enche cadeias, massacra periferias, enquanto os bancos lavam bilhões.

O discurso da corrupção, usado seletivamente, transforma inimigos políticos em monstros e protege os interesses da elite financeira.

A imigração, tratada como “crise” ou “ameaça”, serve como bode expiatório para a crise estrutural do trabalho e do Estado neoliberal, desviando a raiva popular do verdadeiro inimigo: o capital transnacional.

Essas engrenagens trabalham juntas para manter o trabalhador alienado. Fazem com que o oprimido veja no imigrante, no negro, na mulher emancipada, o inimigo — e não no patrão que lhe rouba o salário e o tempo de vida. Fazem com que a exploração pareça justa, que a competição seja a regra da existência, e que a solidariedade de classe seja uma ameaça à "ordem".

Mas a máscara da ideologia não é perfeita. Ela escorrega a cada greve, a cada revolta, a cada abraço entre iguais na trincheira da vida. A verdade, essa força que brota da experiência concreta da opressão, rompe os limites impostos pela mentira ideológica. A cada ato de solidariedade real, a cada gesto de recusa, a engrenagem da dominação range.

A realidade não é uma abstração filosófica. É concreta, material, feita de mãos calejadas e sonhos sufocados. E se a ideologia nos diz que o capitalismo é eterno, nós dizemos que todo sistema cai. Que nenhuma dominação é para sempre. Que a história ainda pulsa nas margens.


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