Aufhebung em Hegel: Superação ou Armadilha Sistêmica?

O conceito de Aufhebung em Hegel é um pilar da dialética hegeliana que ressoa com a promessa de transformação, mas também levanta suspeitas sob um olhar anarquista. A palavra, intraduzível com precisão, carrega os sentidos simultâneos de negação, preservação e elevação – uma tríade que Hegel usa para descrever o movimento da história e do pensamento. Para Marx, que herda o termo via mediação filosófica, Aufhebung é a chave para entender a transição do capitalismo ao comunismo: a propriedade privada é negada, preservada e elevada a um novo patamar. Mas, para um anarquista, essa noção dialética, tão sedutora em sua promessa de superação, pode mascarar uma armadilha sistêmica que perpetua hierarquias e domestica a revolta. Este texto examina Aufhebung sob uma perspectiva anarquista, questionando sua teleologia e sua compatibilidade com a luta por uma emancipação radical.

A Dialética Hegelianae o Fetiche da Resolução

Na filosofia de Hegel, Aufhebung é o motor da dialética, o processo pelo qual contradições são resolvidas em uma síntese superior. O exemplo do trigo que se torna pão ilustra isso: o trigo é negado em sua forma natural, preservado em sua essência e elevado ao pão como produto final. Hegel aplica isso ao movimento histórico, onde o ser e o não-ser, ou o capitalismo e sua negação, convergem no devir – um novo estado que incorpora e transcende os anteriores. Marx, no Manifesto Comunista, usa Aufhebung para descrever a supressão da propriedade privada burguesa, não como destruição total, mas como um processo que conserva elementos progressistas do capitalismo (como as forças produtivas) enquanto os eleva ao comunismo. Para um anarquista, essa visão é problemática. A dialética hegeliana, com sua obsessão por resolução, implica uma teleologia: a história marcha inexoravelmente rumo a uma síntese predeterminada. Essa linearidade histórica, mesmo em Marx, sugere que o capitalismo é uma etapa necessária, um mal a ser suportado para alcançar a emancipação. Tal perspectiva é anátema ao anarquismo, que rejeita narrativas progressistas que justificam opressões presentes em nome de um futuro utópico. A Aufhebung hegeliana, com sua promessa de elevação, pode ser lida como uma tentativa de domesticar o conflito, assimilando-o a um sistema maior que, no fim, preserva a lógica do poder.

Negação sem Síntese: O Anarquismo contra a Reconciliação

O anarquismo, em sua essência, é uma política da negação radical, mas não da negação hegeliana que culmina em síntese. Enquanto Hegel e Marx veem a contradição como um momento a ser superado, o anarquismo abraça a contradição como um estado permanente de resistência. A Aufhebung, com sua tríade de negar-preservar-elevar, implica uma reconciliação que, para o anarquista, soa como capitulação. Preservar elementos do capitalismo, como sugere Marx, é arriscado: as forças produtivas, por exemplo, carregam consigo a lógica da exploração e da centralização. Elevar o capitalismo a um nível superior, mesmo que sob a bandeira do comunismo, pode perpetuar estruturas hierárquicas sob nova roupagem – um Estado socialista, por exemplo, que substitui o capitalista sem abolir a coerção.

A crítica anarquista à Aufhebung ecoa a desconfiança de Theodor Adorno, que via na dialética hegeliana uma assimilação totalizante que elimina a alteridade. Para Adorno, a Aufhebung não liberta, mas reconduz tudo ao sistema. Um anarquista vai além: a Aufhebung é uma cilada que neutraliza a potência disruptiva da revolta, canalizando-a para um projeto de síntese que domestica o conflito. O anarquismo, ao contrário, busca uma negação sem síntese, uma ruptura que não se resolve em um novo sistema, mas abre espaço para a multiplicidade, a autonomia e a experimentação horizontal.

Aufhebung e a Rejeição da Teleologia

Outro ponto de tensão está na teleologia implícita em Aufhebung. Hegel enxerga a história como um processo racional que culmina no “conhecimento absoluto”, onde todas as contradições são resolvidas. Marx adapta isso, vendo o comunismo como o fim da pré-história humana. Para o anarquismo, essa visão é inaceitável. A história não tem um fim predeterminado; ela é um campo de luta contínua, onde a liberdade é construída no presente, não adiada para uma síntese futura. A Aufhebung, com sua promessa de elevação, pode ser lida como uma narrativa que legitima o sofrimento presente em nome de um progresso inevitável – uma ideia que Bakunin e Kropotkin rejeitariam veementemente. Além disso, a Aufhebung pressupõe uma continuidade que o anarquismo contesta. Preservar elementos do capitalismo, como as forças produtivas, implica aceitar que a tecnologia e a organização produtiva desenvolvidas sob a exploração podem ser simplesmente “redirecionadas” para fins emancipatórios. Um anarquista argumentaria que essas forças são intrinsecamente marcadas pela lógica do controle e da dominação. A verdadeira superação, para o anarquismo, não é uma elevação dialética, mas uma ruptura radical com as estruturas de poder, criando formas de produção e convivência que não herdem os vícios do sistema anterior.

Prática Anarquista contra a Aufhebung

Se Aufhebung é a promessa de uma superação que preserva e eleva, o anarquismo propõe uma alternativa: a destruição criativa. Em vez de preservar elementos do mundo antigo, o anarquismo busca gerar novas relações sociais no aqui e agora, sem a mediação de um sistema que absorva contradições. Isso implica práticas como a ação direta, a autogestão e a solidariedade mútua, que não esperam por uma síntese histórica, mas constroem a emancipação no presente. A negação anarquista não busca uma nova totalidade, mas a fragmentação do poder em redes horizontais de cooperação. Aufhebung é um conceito paradoxal, e nisso reside sua força e sua fraqueza. Para Hegel e Marx, o paradoxo é resolvido na síntese; para o anarquismo, o paradoxo é a própria vida, um espaço de tensão criativa que não precisa ser resolvido. A Aufhebung hegeliana, com sua lógica de assimilação, é incompatível com a visão anarquista de uma revolução que não se dobra a sistemas totalizantes, mas floresce na pluralidade e na recusa de qualquer narrativa que domestique a luta.

A Aufhebung de Hegel é uma ferramenta para pensar a transformação, mas sua lógica de resolução e elevação carrega um risco: a domesticação da revolta em nome de um progresso linear. Para o anarquismo, a superação do capitalismo não é uma síntese que preserva suas estruturas, mas uma ruptura que as desmantela, abrindo espaço para a autonomia e a experimentação. Longe de ser uma mera negação destrutiva, a visão anarquista é uma afirmação da possibilidade de criar, no presente, relações livres de coerção – sem esperar pela promessa enganosa de uma Aufhebung que, no fim, pode apenas perpetuar o poder sob nova forma.


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