Relativismo, pós-modernidade e a disputa pela verdade

Há um mantra que se espalhou feito mofo em parede úmida: “tudo é relativo”. Quando viramos a esquina da modernidade para a pós-modernidade, a desconfiança virou estilo, a ironia virou método e a certeza virou vergonha. Só que, do ponto de vista de quem luta para derrubar hierarquias materiais — estado, capital, patriarcado, racismo — essa rendição ao “vale tudo” intelectual tem custo político.

O pano de fundo: modernidade, metanarrativas e ciência

A modernidade europeia (Renascença→Iluminismo) apostou pesado em razão, objetividade e progresso. Marx bebeu desse caldo sem pedir desculpas: investigou a economia política no concreto, tratou a história como processo e deu nome à besta — modo de produção capitalista. “Socialismo científico” não foi bravata: foi compromisso com método, com coerência lógica e com teste na realidade.

Sim, houve triunfalismo, eurocentrismo, cegueiras. Mas o núcleo duro — a ideia de que o mundo tem estrutura, que as relações de exploração podem ser demonstradas, que proposições podem ser verdadeiras ou falsas de acordo com os fatos — foi (e continua sendo) dinamite contra o fetichismo.

A virada pós-moderna: acertos de crítica, erros de rota

A pós-modernidade entra desconfiando de tudo: razão, ciência, metanarrativas, universalismo. Foucault opera bisturis finíssimos no corpo do poder; Lyotard descreve a incredulidade frente às grandes narrativas; Jameson aponta a surdez histórica do presente. Tudo isso tem utilidade: mostra como saberes se acoplam a dispositivos de poder, como identidades são governamentalizadas, como o “universal” foi muitas vezes máscara do particular dominante.

O problema é quando a crítica vira programa: a totalidade se desfaz em micro-lutas sem horizonte comum, e a palavra revolução é rebaixada a urbanismo bonitinho e ciclovia fotogênica. Sem um fio de totalidade, o capital agradece: cada luta vira ilha; o oceano, que é a exploração generalizada, some do mapa.

O truque lógico do “tudo é relativo”

A frase “tudo é relativo” é autodestrutiva. Se tudo é relativo, essa afirmação também o é — logo ninguém tem dever moral ou intelectual de concordar com ela. Se, ao contrário, a frase pretende ser absolutamente verdadeira, então já admitimos um absoluto e o feitiço cai por terra.

Ponto dois: misturar condições de verdade (o que torna uma proposição verdadeira/falsa no mundo) com critérios de verdade (como justificamos, provamos, testamos) é confundir ontologia com epistemologia. Povos antigos podiam estar epistemologicamente justificados em crer que a Terra é plana dado o estado do conhecimento; isso não torna verdadeira a proposição “a Terra é plana”. O mundo não muda conforme nossa ignorância.

A lógica não é “ocidental”: é ferramenta de libertação

Outro espantalho comum: “as leis da lógica são uma imposição aristotélica ocidental”. Calma. A forma de expressar argumentos varia culturalmente; a estrutura lógica que permite a comunicação, a prova e a computação é outra história. A lei da não contradição (uma afirmação não pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo no mesmo sentido) não é capricho europeu; é condição de possibilidade de qualquer algoritmo, de qualquer voto auditável, de qualquer contabilidade que revele o roubo. A recusa disso não emancipa: desarma.

O que a pós-modernidade acerta — e por que não basta

  • Acerta ao denunciar pretensos universais que eram extensões do interesse dominante.
  • Acerta ao mapear microfísicas do poder que esgarçam vidas concretas.

Mas não basta. Sem uma teoria da totalidade — produção, reprodução social, Estado, circulação — a crítica vira cartografia de sintomas. Sem compromisso com verdade material (o que é, não só o que parece), a política vira marketing de causas.

Universalismos mínimos: sem eles, abrimos a porta ao horror

Quando tudo é reduzido a “prática cultural”, qualquer barbaridade pode ser justificada localmente: tortura, estupro, apedrejamento, escravidão por dívida. Um universalismo mínimo — dignidade humana, recusa à violência institucional, autonomia dos corpos — não é colonialismo moral: é chão comum para alianças insurgentes. Anarquistas não precisam de Estado para enunciar universais; precisam de acordo livre, deliberação horizontal e verificação pública.

Verdade como prática coletiva (e não como dogma)

Aqui entra o anarquismo:

  • Sem chefes do saber: nada de gurus acadêmicos ou comissários da teoria. Critério é público, replicável, auditável.
  • Sem polícia da linguagem: mudar nomes sem mudar relações materiais é perfumaria. Linguagem importa, mas não substitui a greve.
  • Com método: medir, comparar, refutar, abrir dados, publicar protocolos. Ciência como commons, não como patente.
  • Com memória histórica: Jameson não estava brincando quando chamou a nossa era de surda à história. Sem história, repetimos moda; com história, retomamos estratégia.

Verdade, aqui, não é martelo de inquisidor. É bússola em assembleia. É aquilo que se sustenta quando passa pela crítica das companheiras, pelos testes na fábrica, pelo balanço do caixa do patrão, pelo chão da ocupação. Se não aguenta escrutínio coletivo, não é verdade útil — é crença de nicho.

Política: do fragmento à frente comum sem centralismo

As lutas “marginais” importam — sobretudo para quem é empurrado para a margem. Mas a margem é produzida pelo centro: capital. Ligar as lutas (moradia, clima, raça, gênero, território) a uma estratégia que ataque propriedade, salário, dívida e polícia é a saída que o relativismo não entrega. Coalizão sem partido-chefão, coordenação sem quartel-general, universalismo mínimo sem Estado — isso é anarquia em movimento.

Nietzsche, prazer e verdade (sem culto ao sofrimento)

Nietzsche cutuca: o prazer não prova a verdade. Verdades duras doem — especialmente quando desmontam conforto de classe (inclusive o nosso). A crítica é válida: não escolhemos uma tese porque ela “faz bem”. Mas também não fazemos culto ao sofrimento. O critério não é dor ou prazer; é correspondência com o real e potência emancipatória. Verdades que libertam tendem a dar trabalho — e vale a pena.

Cinco princípios para uma prática anarquista da verdade

  1. Coerência lógica aberta: rigor sim, dogma não. Contradições apontadas? Corrige.
  2. Evidência material: segue o dinheiro, o tempo de trabalho, o fluxo da mercadoria, o mapa da polícia.
  3. Verificação coletiva: assembleia, pares, redes; publicar métodos, abrir dados.
  4. Memória e totalidade: ligar cada micro-vitória ao macro-tabuleiro; não perder a história de vista.
  5. Universalismo mínimo: dignidade inegociável e antiautoritarismo como base comum.

Contra o cinismo, compromisso

O relativismo nos ensinou a desconfiar — ótimo. Agora é hora de reconstruir sem cair no dogma. Precisamos de verdades provisórias, testadas, revisáveis — e de coragem para dizer o que é: o capital explora, o Estado reprime, a polícia mata, o patriarcado disciplina, o racismo estrutura. Isso não é “narrativa alternativa”; é diagnóstico sustentado em dados, histórias, corpos.

A gente não romantiza a pureza teórica. A gente organiza, mede, checa, publica, erra, corrige — e marcha junto. Porque, no fim, verdade não é um trono: é uma ferramenta nas mãos de quem decide não obedecer.


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