Errico Malatesta: Método, Organização e Estratégia para Além de um Século

Um mapa conceitual do pensamento e da práxis de Malatesta, oferecendo critérios estratégicos para uma esquerda antiautoritária contemporânea.

Biografia e Contexto Histórico

Errico Malatesta (1853-1932) foi um organizador e teórico anarquista cuja militância de seis décadas percorreu a história do movimento operário internacional. Convertido do republicanismo mazziniano ao anarquismo no calor da Primeira Internacional, sua atuação transcontinental (Europa, Américas, África, Ásia) reflete um projeto de enraizamento global das ideias libertárias. Participou ativamente de redes pós-Bakunin, construiu sindicalismo revolucionário na Argentina e utilizou a imprensa como ferramenta de unificação programática. Sua biografia – marcada por cerca de dez anos de prisões – confirma a eficácia de um anarquismo organizado como ameaça estrutural ao poder. Malatesta posicionou-se criticamente frente às grandes inflexões de seu tempo: a emergência do "socialismo científico", a Segunda Internacional, a Primeira Guerra Mundial (mantendo-se internacionalista) rejeitando a participação anarquista na guerra, a Revolução Russa (denunciando precocemente a burocratização bolchevique) e a ascensão do fascismo.

Ciência versus Doutrina: O Método Malatestiano

A base para ler Malatesta com rigor é sua distinção fundamental entre dois campos: (1) ciência, entendida como método de análise da realidade social e histórica, que descreve o que é e o que foi, sem profecias normativas; e (2) doutrina (ou ideologia), onde se inscreve o anarquismo como orientação ético-política que define fins (socialismo libertário) e meios (ação direta, autogestão). A ciência informa a doutrina sobre o terreno de luta, mas não a legitima; essa legitimidade vem de valores e de uma estratégia fundada na "análise concreta da situação concreta". Este método evita tanto o cientificismo determinista (que confunde "é" com "deve ser") quanto o idealismo voluntarista (que projeta fins sem medir correlações de força).

Teoria Social: Conflito, Agência e Poder

Malatesta pensa a sociedade como uma teia dinâmica de relações de conflito, cujo resultado é contingente e fruto da correlação de forças entre classes e grupos. Rejeita teleologias progressistas e determinismos económicos, defendendo uma visão de multi-causalidade onde economia, política, direito, aparato militar e cultura se co-determinam (interagem sem hierarquia pré-determinada). A agência humana (vontade, organização) é central, mas é condicionada por estruturas históricas. Seu diagnóstico da dominação é tripartite: exploração económica, dominação político-burocrática e hegemonia cultural-ideológica. Assim, as classes definem-se não apenas pela propriedade dos meios de produção, mas também pelo controle dos meios de administração e coerção, ampliando o mapa do poder real.

A Estratégia do Dualismo Organizacional

A resposta estratégica de Malatesta é o dualismo organizacional: a articulação indispensável entre (a) a organização social de massas (sindicatos, associações de bairro, movimentos) e (b) a organização política anarquista específica (por afinidade programática).

  • No nível social, o objetivo é construir capacidade coletiva através da democracia de base, independência de classe (frente a Estado, partidos e patronato), combatividade e federalismo de baixo para cima.
  • No nível político, a organização específica – que Malatesta chamava de "partido" no sentido etimológico de "parte" (não no sentido burocrático e estatista dos partidos políticos tradicionais) – exige programa comum, método de trabalho, compromisso regular e uma disciplina entendida como lealdade aos acordos coletivos, preservando a autonomia e a crítica interna.

Esta estrutura evita tanto o espontaneísmo (que se dissolve nos movimentos amplos) quanto o vanguardismo (que substitui o protagonismo popular). Propaganda e educação são funções necessárias desta organização, mas insuficientes sem o trabalho de base concreto.

Reformas, Revolução e Violência

Malatesta via as reformas como campo crucial de disputa, e não como desvio. Reformas conquistadas pela luta direta (e não concedidas "de cima") acumulam força organizativa e consciência, ampliando a capacidade de ação para saltos revolucionários. O nexo entre reforma e revolução é, portanto, prático e pedagógico. Quanto à violência, sua posição era realista: o sistema capitalista-estatal é estruturalmente violento, e a autodefesa popular é uma resposta estratégica a essa violência de origem, nunca um culto à força.

Crítica ao Estatismo e Visão de Socialização

Na crítica aos estatismos de esquerda, Malatesta foi inequívoco: tomar o Estado não emancipa; reconfigura a dominação via burocracia. Nacionalização sem autogestão não é socialização. A alternativa libertária combina três dimensões:

  1. Socialização econômica: propriedade comum e autogestão dos meios de produção.
  2. Socialização política: poder de decisão federativo e de base.
  3. Reconstrução cultural: educação libertária e crítica à ideologia dominante.

O seu ideal distributivo era o comunismo anarquista (“de cada qual segundo sua capacidade, a cada qual segundo sua necessidade”), mas admite que, em transições específicas, modalidades coletivistas (por trabalho) possam operar como etapa tática. O que importa é a direção: redução e abolição de hierarquias, sem restauração de elites.

Legado e Atualidade

Malatesta foi, acima de tudo, um estrategista. Sua ênfase em organização de base, internacionalismo e rejeição ao eleitoralismo marcou profundamente o sindicalismo revolucionário latino-americano, em especial no Brasil e na Argentina.

Três lições centrais de sua herança:

  1. Método: separar análise e programa sem divorciá-los.
  2. Organização: articular movimentos sociais e organização anarquista específica.
  3. Estratégia: Combinar reformas conquistadas e horizonte revolucionário com "paciência impaciente".

Sua atualidade reside no ceticismo quanto a leis históricas, no realismo sobre a violência estrutural e na aposta no enraizamento popular. Frente à financeirização, à captura institucional e às metamorfoses do fascismo social, sua racionalidade estratégica é ainda um recurso raro.

Ferramentas, Não Dogmas

Malatesta não deixou fórmulas, mas critérios. Seu legado não é um evangelho, mas um conjunto de ferramentas que cabe a nós atualizar sem idolatria: preservar o método, testar os meios, avaliar resultados e corrigir rumos.

Sua vida nos recorda que a política que conta é a que persiste e aprende. No presente latino-americano de crises recorrentes, traduzir Malatesta em práticas organizativas concretas é mais que homenagem: é necessidade.

Errico Malatesta permanece como bússola em meio às tempestades, lembrando-nos que liberdade não se recebe: conquista-se, organiza-se e se sustenta coletivamente.


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