A Tirania do Timing: Aceleração Digital e a Paralisia da Solidariedade
Um episódio banal expõe uma doença de época. Num grupo de WhatsApp, uma mulher em posição de liderança sofre um ataque gordofóbico. A mensagem fica lá, horas, à vista. Ninguém reage. Mais tarde, surgem as justificativas em coro: “vi, mas já era tarde”; “perdi o timing”.
Não é falha moral privada. É o sintoma de um regime de temporalidade que nos governa: a aceleração social. Hartmut Rosa descreve seu tripé com precisão: (1) aceleração técnica, que comprime espaço e comunicação (o imediatismo do WhatsApp); (2) aceleração da mudança social, que torna referências éticas e culturais voláteis; e (3) aceleração do ritmo de vida, a respiração curta de quem corre para permanecer no mesmo lugar. O “timing perdido” é a forma cotidiana dessa lógica: a janela de relevância política encolhe ao microscópio. A violência ocorre e, em minutos, a timeline muda de assunto. Reagir horas depois soa anacrônico, fora de lugar, quase arqueologia moral. A continuidade da experiência se estilhaça; sem narrativa coerente, não há resposta ética sustentada.
Zygmunt Bauman chama de Modernidade Líquida o terreno onde isso prospera: laços frágeis, vínculos descartáveis, pertencimentos intermitentes. O grupo de WhatsApp é seu epítome, agregado volátil de indivíduos flutuantes. A solidariedade também se liquefaz: passa a exigir uma sincronicidade improvável quando cada um é sugado para o próprio fluxo de dados.
François Hartog chama o clima histórico de presentismo: um presente perpétuo que devora passado e oblitera futuro. Na topografia digital, “tempo real” vira o único tempo. Substitui-se deliberação por reação; reflexão por reflexo. O ataque gordofóbico deixa de ter “antes” (construção de ambiente seguro) e “depois” (reparação e justiça). Vira um flash no presente contínuo, soterrado por memes, notícias, notificações.
Esse bombardeio produz o sujeito atomizado que Deleuze e Baudrillard diagnosticam: hiperconectado e, ao mesmo tempo, radicalmente só. Cada qual recebe o impacto da mensagem de forma assíncrona, isolada. A sobrecarga informacional drena a cognição e também a reserva afetiva. Indignação vira item numa checklist emocional — facilmente adiado, depois esquecido. Não houve “nós” para responder à agressão; apenas um mosaico de “eus” dessincronizados, cada qual paralisado no seu relógio.
Aqui, a questão é política. O anarquismo clássico mirou as formas visíveis de autoridade: Estado, Igreja, Capital. Mas o que fazer quando o controle se aloja na infraestrutura temporal da comunicação? A aceleração opera como poder difuso, descentralizado, anônimo, disciplinando corpos e mentes de modo mais sutil que o aparelho repressivo. Corrói a base material da ação direta e da ajuda mútua: tempo, presença, deliberação, confiança; processos intrinsecamente lentos.
A pergunta, então: e o anarquismo nisso tudo? Se autonomia se constrói em comunidade e se ação direta exige coordenação, como fazê-lo quando “comunidade” é pulverizada pela aceleração e o “timing” da ação é ditado pela lógica da velocidade? O anarquismo contemporâneo ajuda: desloca o foco das macroestruturas para as microfísicas, para as formas de poder que produzem subjetividades e governam ritmos. A aceleração é tecnologia de poder. Mantém-nos atomizados, reativos, impotentes. Rouba o tempo necessário à organização horizontal, ao debate profundo, ao cuidado.
A omissão diante do ataque não foi acidente: foi sintoma. Derrota da ética pela aceleração. Triunfo do presentismo sobre a solidariedade.
Se é assim, a resistência é, também, uma guerra pelo tempo. Desacelerar é ato político. Recusar o governo do “tempo real” e criar bolsões de tempo lento (para debate, cuidado, escuta) é sabotagem legítima. É nesse tempo roubado do ritmo alucinado que reatamos biografias, retessemos solidariedades e reaprendemos a estar presentes quando a dignidade do outro é violada.
A próxima mensagem de ódio pode pingar agora. A questão é: teremos conquistado tempo suficiente para vê-la (e responder) a tempo?
O anarquismo contemporâneo insiste: o poder está também na capilaridade, nos regimes de tempo que internalizamos. O “sujeito digital”, fragmentado e acelerado, é o campo onde esse poder opera. A luta não se reduz ao inimigo externo; enfrenta as lógicas que nos atravessam. Se a autoridade contemporânea se manifesta como regime temporal que atomiza e paralisa, a resistência anarquista deve ser insurreição contra o tempo: construir zonas de desaceleração, forjar éticas da atenção e do cuidado que enfrentem a tirania do “tempo real”, reivindicar a lentidão como prática política e reconstruir a solidariedade não como reflexo instantâneo, mas como projeto contínuo e deliberado; sobretudo quando nos dizem que “o timing já passou”.