O Inferno do Mesmo: Notas sobre Byung-Chul Han e a Auto-Exploração como Nova Morfologia do Poder
A diagnose de Byung-Chul Han é precisa como um bisturi e, para nós, anarquistas, profundamente familiar em sua descrição do sintoma, ainda que radicalmente divergente em sua prescrição. Han identifica com clareza a mutação do poder disciplinar descrito por Foucault – a sociedade do “não”, da norma, da interdição e do confinamento – para a sociedade de rendimento do “sim”. Uma sociedade que já não precisa de um tirano externo, pois cada indivíduo se tornou o capataz de si mesmo.
Este é o triunfo final e mais perverso da biopolítica: a internalização completa do mecanismo de exploração. O projeto anarquista clássico, centrado na luta contra um opressor identificável – o Estado, o Capital, o Patrão – vê-se diante de um novo e mais insidioso inimigo: o sujeito de rendimento. A liberdade, gritada como mantra pelo neoliberalismo, revela-se aqui em sua nudez obscena: é a liberdade de se explorar até o colapso neuronal. A coerção não desapareceu; tornou-se idêntica à própria noção de liberdade. Este é o cerne da nova servidão voluntária.
O Excesso de Positividade e a Agonia do Eros
Han chama isso de "excesso de positividade". Nós, anarquistas, reconhecemos isso como a erradicação da Alteridade, a colonização total do campo do possível pelo capitalismo psicótico. O "Outro", enquanto diferença radical, ameaça e possibilidade de transformação, é sistematicamente abolido. Em seu lugar, temos apenas o "Mesmo": um infinito espelho narcísico onde o "eu" só consegue ver reflexos de seu próprio projeto de otimização. O smartphone não é um instrumento de conexão, mas uma ferramenta de auto-verificação e de produção de um self mercantilizado. As redes sociais são a fábrica do Mesmo, onde a performance da individualidade segue algoritmos previsíveis.
A análise do filósofo sul-coreano é crucial ao sublinhar que essa sobreabundância do idêntico move o eixo da patologia social. Não sofremos mais, primariamente, de problemas histéricos, frutos da repressão e do limite (a negatividade do Outro), mas de problemas narcisistas: depressão, hiperatividade, TDAH, borderline. A violência tornou-se "neuronal," imanente ao sistema, auto-agressiva e autodestrutiva. O sujeito, desfeito por essa dispersão absoluta, é forçado a um culto à saúde e à mera vida, vazio de sentido – o retorno do Último Homem de Nietzsche, aquele que vive mais tempo, mas não sabe para quê.
A ausência do Eros, no sentido platônico e hegeliano que Han recupera, é a chave para a ausência de Negatividade. O Eros, a irrupção cataclísmica e salvadora do Outro, é o motor do ascenso, da superação, da conclusão que dá sentido. Sem ele, resta apenas o desejo aditivo de objetos e reforços do ego, sem a capacidade de imaginação ou anelo genuíno. Sem a negatividade da pausa, do silêncio e da reflexão, o pensamento se torna repetitivo e aditivo – mera computação de dados, e não teoria ou narrativa. Não há revolução possível onde não há inimigo externo, onde não há o outro contra o qual lutar, mas apenas o eu a ser eternamente otimizado.
Deserção e Sabotagem do Si: A Revolução Anarquista do Tempo
Onde Han vê a necessidade de uma "revolução do tempo" e do retorno ao Eros e à vida contemplativa, nós vemos a urgência de uma deserção. A "vida contemplativa" que ele exalta, se tomada de forma individualista, corre o risco de se tornar mais uma mercadoria de luxo no mercado do bem-estar, apenas outra modalidade de self-care otimizador. A verdadeira resistência não está na simples desaceleração, sintoma que pode ser comodificado, mas na criação de linhas de fuga ativas, na construção de zonas de opacidade onde o rendimento não possa se enraizar. É a prática da sabotagem do si, a recusa em performar o "eu empreendedor" que nos foi imposto.
A recuperação do "Outro" não é, para nós, um gesto romântico, mas uma estratégia de guerra contra o capitalismo de controle. A Alteridade é o terreno da solidariedade, do comum, da ação direta e do conflito real – tudo aquilo que o regime da positividade busca eliminar. A amizade, o amor, o diálogo agonístico que Han menciona, longe de serem apenas antídotos existenciais, são práticas micropolíticas de construção de contra-hegemonias. São formas de nos re-tecer como corpos em relação, não como ilhas de desempenho.
O projeto anarquista, não é mais (apenas) destruir o Estado, mas desmontar o dispositivo de auto-exploração. É uma luta pelo inconsciente, pelo desejo, pela atenção. É uma guerra pelo tempo, não para "retomá-lo" num sentido nostálgico, mas para torná-lo heterogêneo, aberto à invenção e ao conflito. A "sociedade do cansaço" só será derrotada quando conseguirmos desativar o agente infeccioso que cada um de nós carrega dentro de si e, coletivamente, inventarmos novas formas de vida que não estejam subordinadas ao imperativo do rendimento. A verdadeira greve, hoje, é a greve de si.