Não, Anarquismo Não É Sobre Caos: É Sobre a Desobediência Legítima

A imagem do caos. O quebra-quebra irracional. A bomba fumegante. Esta é a caricatura que o poder dominante, através de seus aparelhos ideológicos, meticulosamente construiu e vendeu para você sobre o anarquismo. Não é por acaso. Reduzir uma das tradições intelectuais e práticas mais ricas da esquerda a um simples sinônimo de desordem é um ato de contra-insurgência ideológica. É uma manobra covarde para deslegitimar a pergunta mais perigosa que pode ser feita: por que devo obedecer?

A autoridade, em qualquer forma que se apresente, (do Estado ao patrão, do patriarca ao policial) deve carregar eternamente o ônus da prova. Ela deve demonstrar, a cada dia, sua legitimidade e necessidade. Se falhar, deve ser desmantelada. Esta é a proposição fundamental do anarquismo, não um apelo ao vazio, mas sim a uma ordem radicalmente diferente.

A Anatomia da Dominação: Nada Está Acima do Questionamento

A exigência anarquista não se aplica apenas às macroestruturas. É um ácido que corrói toda e qualquer hierarquia, expondo suas fundações podres ou, raramente, justificadas.

Um avô que puxa sua neta de volta do caminho de um carro exerce autoridade. Ele pode provar sua legitimidade: a ação foi necessária, imediata e visava a proteção de uma vida incapaz de discernir o perigo. O ônus da prova foi cumprido.

Agora, transportemos este teste para outras esferas: * Um CEO pode demonstrar por que merece o poder de ditar a vida de milhares enquanto acumula riquezas obscenas? * O patriarcado pode justificar por que o trabalho doméstico e emocional recai majoritariamente sobre as mulheres? * Um Estado imperialista pode provar a legitimidade de bombardear populações civis em outros países?

A resposta, sabemos, é um estrondoso e violento não. A autoridade raramente se questiona. Quem está no poder internaliza sua própria legitimidade como um fato natural. A psicologia do opressor é a da cegueira conveniente.

Portanto, a responsabilidade de desafiar a autoridade recai sobre nós, os subordinados. Foi assim quando escravizados se recusaram a aceitar sua condição como natural. Foi assim quando mulheres disseram "não" ao contrato social patriarcal. É assim quando trabalhadores questionam a naturalidade de vender sua força de trabalho por um salário – uma ideia que, não esqueçamos, os primeiros operários denunciavam como "escravidão assalariada".

O sistema não sobrevive pela força bruta sozinha; ele sobrevive porque conseguimos imaginar alternativas. O anarquismo é a recusa ativa dessa aceitação. É a prática constante de perguntar: Por quê? Quem disse? Com que direito?

A "Ordem" Anarquista: Autogestão e Organização desde Baixo

O mito do caos serve para ocultar a proposta central do anarquismo: a criação de formas de organização mais profundas, democráticas e legítimas, construídas de baixo para cima.

Pense na autogestão de um departamento universitário: professores (em teoria) decidem coletivamente currículos, pesquisas e tarefas sem um "chefe" tradicional. A motivação flui da necessidade interna e do projeto coletivo, não da coerção externa. A vida acadêmica é atraente precisamente por este vislumbre de autonomia.

É este modelo que propomos escalar para toda a sociedade: * Conselhos de trabalhadores autogerindo fábricas e serviços. * Assembleias de bairro tomando decisões sobre suas comunidades. * Uma complexa rede de federações livres** coordenando esses conselhos e assembleias de forma voluntária.

Os desafios logísticos – distribuição de tarefas, formação de especialistas, etc. – são reais. Mas a diferença crucial é que numa sociedade anarquista eles seriam resolvidos pela coletividade afetada, não por decreto de uma autoridade distante e não eleita, como o conselho de administração de uma corporação ou o parlamento de um Estado.

Estratégia: Contra o Estado, Contra o Capital, Contra o Aceleracionismo Aqui reside um debate crucial. Uma visão simplista – e perigosamente infantil – prega a abolição imediata do Estado como um fim em si mesmo. Esta posição, muitas vezes irmana com o aceleracionismo, é uma armadilha fatal para a classe trabalhadora.

Por que o aceleracionismo é uma falágia reacionária?

O aceleracionismo, em sua vertente de "esquerda", argumenta que devemos intensificar as contradições do capitalismo para acelerar seu colapso. Na prática, isso significa, conscientemente ou não, apoiar políticas que enfraquecem as já frágeis proteções estatais, entregando a população desprotegida à voracidade do capital.

Querer acabar com o Estado hoje, sob a hegemonia capitalista, não é um ato revolucionário; é um ato de suicídio de classe. Significa querer demolir a Previdência Social, o SUS, a CLT, a regulação ambiental e trabalhista. Significa condenar concretamente milhões à fome, à doença e à morte precoce, tudo em nome de uma pureza ideológica abstracta.

A posição do anarquismo social – a vertente que historicamente se enraíza nas lutas populares – é outra. Devemos defender ferrenhamente as conquistas sociais garantidas pelo Estado precisely porque elas são fruto de nossa própria luta e representam uma trincheira vital contra a barbárie capitalista.

A estratégia não é fortalecer o Estado, mas usá-lo como um campo de batalha defensivo enquanto construímos, desde já, o poder popular dual que o tornará obsoleto: cooperativas, sindicatos combativos, redes de apoio mútuo, ocupações e assembleias. O caminho para uma sociedade sem Estado não é destruí-lo cegamente e esperar que algo surja do caos, mas sim construirmos um tecido social autogerido tão forte e resiliente que o Estado simplesmente definhe por falta de função.

É uma luta dupla: defender o pouco que arrancamos do inimigo enquanto construímos, nas entranhas da velha sociedade, os alicerces da nova. Pensar em anarquismo é pensar em organização radical. É planejamento. É construção.

A luta nunca foi pelo caos. A luta é por uma ordem verdadeiramente legítima.


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