Malatesta e a Dialética da Organização Anárquica

Quando Errico Malatesta escreveu A Organização I (1897), não estava apenas respondendo a debates internos do anarquismo europeu. Estava tocando num nervo que até hoje paralisa parte do movimento: a confusão entre organização e autoridade. A recusa da organização, vista como garantia contra a tirania, torna-se, ironicamente, um álibi para a inação e, pior, para a reprodução espontânea de hierarquias ocultas.

É preciso colocar isso em chave dialética. A crítica de Malatesta se move entre polos: por um lado, a necessidade ontológica da organização como condição da vida social; por outro, o perigo de cristalizar essa necessidade em estruturas autoritárias. O anarquismo, para ele, não é a negação da organização, mas a construção de sua forma libertária.

A sua tese central é tripartida e dialética

Organização como Condição da Vida Social: Malatesta é categórico: “Direito e organização na sociedade são quase sinônimos”. A organização não é uma opção; é um imperativo biossocial. O homem isolado é uma impossibilidade, um “animal impotente”. A cooperação (a associação para um fim comum) é a base material sobre a qual qualquer vida que não seja meramente animal é construída. Negar isto é negar a realidade da existência humana em sociedade.

A Distinção Fundamental: Organização vs. Autoridade: Este é o núcleo da contribuição de Malatesta. O erro fatal é confundir os dois termos. A autoridade é a delegação da força para impor uma vontade alienada; a organização é a coordenação voluntária de esforços para um objetivo comum. A primeira é parasitária e opressiva; a segunda é fundamental e libertadora. A questão anárquica, portanto, não é se devemos nos organizar, mas como nos organizarmos sem gerar autoridade. A resposta reside na adesão voluntária, no federalismo, na livre associação e na capacidade de secessão.

A “Autoridade” da Competência não é Autoritarismo: Malatesta antecipa aqui uma objeção previsível. Em qualquer projeto coletivo, surgirão naturalmente indivíduos com maior conhecimento ou habilidade para uma tarefa específica. Seguir sua orientação (o maquinista no trem, o arquiteto na obra) não é submeter-se a uma autoridade coerciva, mas sim exercer a razão prática. É a diferença entre a hierarquia imposta (autoritarismo) e o reconhecimento livre da competência (organização eficaz). Recusar-se a esta dinâmica em nome de um igualitarismo abstrato é condenar qualquer empreendimento complexo ao fracasso, tornando a anarquia um sinónimo de caos primitivo, não de ordem social livre.

Partido Anarquista: o que é e o que não é

No texto seguinte, A Organização II, Malatesta desloca o debate para dentro do movimento. Aqui é crucial desfazer uma confusão: quando ele fala em “partido anarquista”, não se trata de um partido eleitoral, centralizado e burocrático nos moldes social-democratas. “Partido” é usado no sentido de parte que toma posição no conflito social. Um agrupamento político que compartilha um programa, métodos e fins, federado por afinidade, não por disciplina cega.

Malatesta parte de um axioma: se anarquia é uma sociedade organizada sem autoridade, então o movimento que a almeja deve ser a pré-figuração dessa prática, e a recusa de um programa comum (em nome de um anti-dogmatismo abstrato) significa, na prática, renunciar à ação coordenada, como um engenheiro que decide demolir uma ponte sem plano, esperando que “uma teoria superior” apareça no meio das colunas

Essa recusa da organização é uma contradição performativa onde o isolamento voluntário do indivíduo anarquista não é um ato de pureza, mas uma capitulação à fraqueza, um “desperdiçar energia em pequenos atos ineficazes” que inevitavelmente leva à completa inação, já que a anarquia não é especulação acadêmica, mas um projeto prático que exige objetivos e estratégias compartilhadas, onde a organização não é uma traição ao ideal, mas a sua condição de possibilidade material.

Três Objeções e Suas Falácias

Malatesta responde com precisão a três objeções recorrentes:

“Não temos um programa, não somos um partido”: Malatesta desmonta esta objeção, frequentemente mascarada de anti-dogmatismo, como um dandismo intelectual inconsequente. Ele traça uma linha divisória crucial: a anarquia não é uma especulação académica (como a matemática ou a sociologia), é um “projeto que se quer pôr em prática”. Um engenheiro não pode demolir uma estrutura sem um plano, à espera que uma teoria superior surja enquanto o trabalho está por fazer. Da mesma forma, um movimento revolucionário requer um “programa determinado” (um conjunto de objetivos e métodos partilhados) que funcione como um plano de ação, sempre perfectível, mas nunca absentista. A recusa do programa é a recusa da acção coordenada.

“A organização cria chefes”: Esta é a objeção mais potente, e Malatesta a enfrenta com brilhantismo. A sua resposta é um reverso dialético: não é a organização que cria chefes; é a desorganização que os gera. A autoridade surge precisamente da incapacidade de uma colectividade se auto-organizar para satisfazer suas próprias necessidades. A polícia, o negociante, o intelectual que centraliza a correspondência. Todos são parasitas que preenchem o vazio deixado pela nossa inépcia organizativa. A organização formal, com seus encarregados revogáveis e sua divisão consentida de tarefas, é o único antídoto contra esta autoridade informal e não responsável. O remédio, insiste Malatesta, não é a negação da organização, mas o desenvolvimento de uma “consciência perfectível” em cada membro, que exerça suas faculdades críticas e se recuse a ser “instrumento passivo”.

“A organização expõe-nos à repressão”: Malatesta invalida este argumento com pragmatismo. A história demonstra que a desorganização leva à debandada total perante a repressão, enquanto a organização proporciona resiliência e meios de defesa colectiva. A sua metáfora militar é elucidativa: podemos combater “em massa ou em ordem dispersa” conforme o terreno, mas devemos sempre ser “membros do mesmo exército”. O “espírito de organização”, as sólidas amizades, o acordo tácito de conduta, é uma estrutura resiliente que sobrevive mesmo quando a organização formal precisa de se dissolver temporariamente.

Dialética e Maturidade Política

A dialética de Malatesta é clara: negar a organização em nome da liberdade resulta na reprodução inconsciente da autoridade. Organizar-se sem autoridade é a síntese anárquica que precisamos cultivar. Isso exige superar a adolescência política do “não” absoluto e abraçar a tarefa adulta de construir formas livres de coordenação.

A liberdade não é ausência de vínculos, mas a possibilidade de tecê-los conscientemente. “É melhor estarmos desunidos que mal unidos”, lembra Malatesta, mas isso não significa isolamento; significa construir constelações de afinidade, grupos federados, movimentos que prefiguram a sociedade que desejamos.

No fim, a mensagem é direta: Anarquia significa sociedade organizada sem autoridade. O futuro não se improvisa no caos. Ele se prepara na prática organizada, horizontal e voluntária das massas.


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