Lugar de Fala ou Silenciamento Arbitrário? Sobre a Distorção de um Conceito
O que é lugar de fala, afinal? "Lugar de fala" não é um veto, tampouco uma mordaça. É uma ferramenta de análise crítica das relações de poder que estruturam quem fala, quem é ouvido, e quem é sistematicamente silenciado. Surgido de uma tradição teórica e política do feminismo negro e da epistemologia situada, o conceito convida à reflexão sobre a posição social de quem fala, e não à interdição do discurso alheio.
Djamila Ribeiro, em O que é lugar de fala?, explica que esse termo não significa que só quem vive determinada opressão pode falar, mas que a experiência vivida molda perspectivas e confere autoridade epistêmica. Isso se apoia em autoras como bell hooks, Patricia Hill Collins, Donna Haraway e Gayatri Spivak, todas elas críticas às estruturas que invisibilizam vozes subalternizadas, mas também profundamente comprometidas com o diálogo transformador.
Protagonismo não é monopólio
Outra confusão comum é entre lugar de fala e protagonismo. Protagonismo não significa exclusividade do discurso, mas a centralidade de determinadas vozes em debates que historicamente as excluíram. Quando falamos, por exemplo, em protagonismo de pessoas trans ao discutir transfobia, isso não impede que pessoas cis falem sobre o tema, mas exige que elas o façam com consciência da sua posição e sem substituir ou eclipsar as experiências vividas por quem sofre a opressão na pele.
Protagonismo é uma estratégia de reparação histórica e deslocamento do centro do discurso. É tirar o holofote das estruturas hegemônicas e colocá-lo em quem sempre esteve nos bastidores, falando sem microfone, sendo interrompido ou simplesmente ignorado.
A distorção contemporânea
O lugar de fala nunca deveria ter se tornado um bordão para calar pessoas, mas sim uma ferramenta para amplificar vozes historicamente abafadas. No entanto, o que vejo hoje é uma inversão perversa: um termo que nasceu da luta contra a opressão sendo usado como um martelo retórico para policiar discursos, muitas vezes de forma acrítica e autoritária.
Quando Djamila Ribeiro popularizou o conceito no Brasil, ela o fez a partir de uma tradição teórica que inclui bell hooks, Patricia Hill Collins, Donna Haraway e Gayatri Spivak — pensadoras que nunca defenderam que apenas certos grupos pudessem falar, mas sim que certas experiências eram sistematicamente ignoradas. O lugar de fala não é sobre proibir, mas sobre reconhecer que o conhecimento é situado (como bem lembra Haraway) e que, em uma sociedade estruturada pelo racismo, pelo patriarcado e pela cisheteronormatividade, algumas narrativas são silenciadas desde sempre.
A questão nunca foi: "Você não pode falar disso", e sim: "De onde você fala?" — uma provocação sobre posicionalidade, não uma sentença de silêncio. O problema surge quando transformamos o conceito em uma arma de deslegitimação fácil, usada para encerrar debates com frases como "Esse não é seu lugar de fala", como se isso, por si só, fosse um argumento.
Protagonismo ≠ Monopólio da Fala
O que está em jogo não é quem pode ou não pode falar, mas quem é ouvido.
Spivak, em Can the Subaltern Speak?, não diz que os subalternos são incapazes de falar — ela mostra que suas vozes são sistematicamente abafadas pelas estruturas de poder. Da mesma forma, bell hooks não escreveu para que apenas mulheres negras discutissem racismo e sexismo, mas para que suas análises fossem centrais, e não periféricas, no debate.
Quando confundimos lugar de fala com exclusividade da fala, perdemos o ponto principal: o protagonismo das pessoas marginalizadas. Protagonismo não significa que só elas podem tratar de certos temas, mas que suas vivências devem ser o centro da discussão, não um apêndice. Se um homem branco quer falar sobre racismo, a pergunta não é "Você tem direito a isso?", mas "Como você está se posicionando? Está reproduzindo hierarquias ou amplificando as vozes que já estão falando?"
Conhecimento Situado ≠ Dogmatismo
Donna Haraway nos lembra que todo conhecimento é parcial e situado. Isso significa que nenhuma fala é neutra ou universal, mas também que nenhuma experiência é um enclave isolado. Se levarmos o lugar de fala a um extremo essencialista, caímos em uma lógica identitária rígida que ignora a complexidade das opressões — justamente o que Patricia Hill Collins critica ao falar da matriz de dominação, onde raça, classe e gênero se entrelaçam de maneiras múltiplas.
Se uma mulher negra pode (e deve) falar sobre machismo, isso não impede que um homem negro reflita sobre o tema — mas ele precisa reconhecer como sua experiência difere e como pode somar sem sobrepor. Se uma pessoa trans fala sobre transfobia, isso não desautoriza pessoas cis aliadas, desde que elas não tentem tomar o microfone, mas sim fortalecer o alcance das vozes trans.
Para além da polícia do discurso
Como anarquista, sempre desconfiei de qualquer tipo de sacerdócio discursivo. Hierarquias de fala são também estruturas de poder. Se usamos o lugar de fala como uma nova forma de criar castas epistêmicas — onde apenas alguns têm o "direito" de discursar sobre certos temas — estamos reproduzindo a lógica autoritária que buscamos superar.
O verdadeiro desafio é escutar mais, falar menos quando necessário, mas nunca silenciar por decreto. O lugar de fala deveria ser um convite à humildade epistêmica, não uma ferramenta de exclusão. Como nos ensina bell hooks em diversos de seus escritos, é na abertura ao diálogo crítico e honesto que reside o potencial real de transformação. E transformação, para ser real, não pode vir de novos dogmas, mas da desconstrução constante das opressões que nos cercam — inclusive aquelas que nascem entre os nossos próprios discursos.