A Dor do Dono: Sobre Traição, Propriedade e o Mito da Posse Masculina
O debate parece inofensivo:
"Dói mais ser traído por alguém do mesmo sexo ou do sexo oposto?"
Mas por trás dessa pergunta aparentemente banal, esconde-se uma estrutura carcomida: a lógica da propriedade privada aplicada aos corpos femininos.
Quando um homem diz que seria "pior" se sua companheira o traísse com outro homem, ele não está falando de amor, nem de dor afetiva genuína. Está falando de perda de controle sobre um corpo que acreditava possuir. É sobre posse ferida, não sobre coração partido.
1. O Corpo da Mulher como Território Conquistado
Na mentalidade patriarcal, o corpo feminino é visto como terra ocupada: delimitada, defendida, explorada. O “outro homem” não é apenas um rival afetivo — ele é um invasor de propriedade.
Como escreveu Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo:
“Não se nasce mulher: torna-se mulher.”
Com isso, Beauvoir revelou que a identidade feminina é moldada historicamente a partir de estruturas de opressão. No contexto patriarcal, a mulher é socialmente construída como um ser para o outro — um objeto a ser moldado, avaliado, possuído.
Em última instância, ela é tratada como um bem que circula entre os homens — não pertence a si, mas ao olhar e à posse alheia.
Essa lógica é central na crítica de Tatiana Nunes da Cruz, que, ao estudar a infidelidade feminina nos anos 1950, mostrou como o corpo da mulher era visto como propriedade do marido, e a traição feminina era um ato de desafio à hierarquia de gênero.
O homem traído por outro homem vê sua “posse” ser violada. Já quando a traição envolve outra mulher, a lógica da dominação heteronormativa continua intacta. A lésbica não concorre, ela é neutralizada no imaginário patriarcal — fetichizada, até celebrada — pois não ameaça diretamente o monopólio masculino sobre o corpo da mulher.
É por isso que a pornografia lésbica é tolerada (e explorada), enquanto o sexo entre homens é frequentemente censurado, ridicularizado ou repudiado. A rivalidade só existe quando a propriedade é posta em jogo.
2. A Máscara do Ciúme e a Farsa da Naturalidade
"Mas é natural sentir mais ciúmes de um homem", dizem. Não — é condicionado. Como lembra Susan Brownmiller, em Against Our Will: Men, Women and Rape, o controle sexual do corpo feminino sempre foi ferramenta de dominação — o estupro e o medo do estupro funcionam como métodos históricos de controle masculino sobre as mulheres, reforçando a ideia de que o corpo feminino pertence ao homem.
O que se chama de “ciúmes” nada mais é do que pânico de perder o domínio.
Michel Foucault, em suas obras sobre sexualidade e poder, mostrou que o desejo é regulado por discursos normativos. O afeto é policiado. O que é considerado "normal", "fidelidade", "traição", tudo isso é produção cultural enraizada em estruturas de poder. Assim, quando uma mulher “escapa” para outra mulher, ela sai da lógica da mercadoria. Já não é objeto de posse nem de disputa — é corpo que se autoafirma fora do mercado masculino.
3. A Igualdade Liberal e a Interiorização da Opressão
"Ah, mas hoje em dia mulheres também pensam assim!"
Sim, e isso não é progresso — é interiorização da lógica patriarcal.
Como defendia Maria Lacerda de Moura, crítica feroz da moral sexual burguesa, a emancipação não está em mudar o dono do corpo, mas em abolir completamente o conceito de posse. Esta síntese condensa a essência de sua filosofia anarco-individualista, centrada na autonomia radical dos corpos e da vontade.
A ideologia da igualdade liberal quer nos convencer de que repetir o comportamento do opressor é liberdade. Não é. É só outra máscara.
O feminismo radical — de Andrea Dworkin, que denunciou a pornografia como forma de exploração do corpo feminino, até bell hooks, que analisa as interseções entre raça, classe e gênero — sempre alertou que querer "igualdade" dentro de um sistema podre é como disputar quem pode ser o carcereiro com mais direitos. Como se escravizados brigassem para ver quem é o mais leal ao senhor.
4. Desapropriação Afetiva
Piotr Kropotkin, em A Conquista do Pão, argumentava que a propriedade privada é a raiz da violência social. E isso vale para os afetos também. A ideia de que alguém “me pertence” é uma extensão da mesma mentalidade que diz: “isso é meu, logo, posso controlar, usar ou punir”.
Camille Froidevaux-Metterie, filósofa feminista contemporânea, mostra como a vergonha que as mulheres sentem do próprio corpo é um dispositivo patriarcal de controle e apropriação. O corpo feminino é marcado por vigilância e culpa — e o amor, quando regido pela lógica da posse, se torna apenas mais uma extensão dessa vigilância.
5. Conclusão: Nem Seu Corpo, Nem Sua Dor
Da próxima vez que alguém repetir que “traição com homem dói mais”, pergunte:
Dói por amor? Ou por orgulho ferido?
Dói porque você a perdeu? Ou porque outro homem a "ganhou"?
Se a resposta for a segunda, não estamos falando de amor. Estamos falando de dominação disfarçada de sentimento, da ferida narcísica de um ego moldado para possuir.
Como dizia Emma Goldman:
“Se não posso dançar, não quero fazer parte da sua revolução.”
Pois eu completo:
Se não posso amar sem possuir, não sei amar de verdade.
Referências:
- O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir
- Against Our Will, Susan Brownmiller
- La Femme Désirée, Camille Froidevaux-Metterie
- A Conquista do Pão, Piotr Kropotkin
- The Politics of Reality, Marilyn Frye
- O Amor como Ato de Rebeldia, Maria Lacerda de Moura
- Feminism Is for Everybody, bell hooks
- Woman Hating e Intercourse, Andrea Dworkin
- Vínculos e Transgressões: Mulheres e Infidelidade na Década de 1950, Tatiana Nunes da Cruz
- História da Sexualidade, Michel Foucault