Abolir o Trabalho? Da Utopia do Ócio à Reconquista do Sentido

“Certo. Então todo mundo odeia trabalho.” Com essa frase direta, a pensadora Neala Schleuning abre seu texto “A Abolição do Trabalho e Outros Mitos” com um diagnóstico brutalmente honesto. A aversão ao trabalho parece ser um traço quase universal. Sonhamos com um futuro livre de obrigações, um mundo em que máquinas realizem todo o esforço e possamos viver no ócio — o eterno sonho do gafanhoto libertado da disciplina da formiga.

Mas Schleuning nos convida a olhar para esse desejo com desconfiança. E se essa fantasia de “libertação pelo ócio” for, na verdade, uma armadilha? E se o verdadeiro caminho para a liberdade não estiver na abolição do trabalho, mas em sua transformação radical — na retomada de seu sentido humano, comunitário e criativo?

O que ela propõe é uma virada de perspectiva: não fugir do trabalho, mas recuperar o controle sobre ele. Este ensaio explora as ideias mais provocativas de Schleuning, articulando-as em torno de uma distinção crucial — a diferença entre a labuta e o bom trabalho. A partir dessa chave, compreenderemos por que o problema não é o esforço em si, mas o sistema que o esvazia de sentido.


1. O “Direito à Preguiça” Como Armadilha Política

A ideia de simplesmente “recusar-se a trabalhar” soa, à primeira vista, como o gesto supremo de resistência. Contudo, Schleuning a descreve como uma posição impotente e individualista. Longe de ser revolucionária, essa atitude retira o sujeito da arena política onde a transformação coletiva ocorre.

Nossos céus estão repletos com poluição, mas ao invés de irmos atrás dos poluidores, contestamos individualmente nossos hábitos tabagistas”, observa a autora. A recusa ao trabalho (tal como a recusa ao consumo) converte um problema estrutural em uma questão de escolha pessoal. O resultado é a despolitização do conflito.

Esse “direito à preguiça” transforma a crítica social em uma performance de isolamento. O indivíduo se retira do campo de batalha social, abrindo mão de lutar pelo controle coletivo das condições de trabalho. O gesto romântico da ociosidade se revela, então, como um ato de desespero, não de emancipação.


2. Liberdade Pode Significar Mais Trabalho, Não Menos

A promessa de uma vida livre de esforço é outro mito que Schleuning desmantela. Escapar da “escravidão salarial” não leva necessariamente ao lazer — pode, na verdade, exigir ainda mais trabalho.

O preço da liberdade da escravidão salarial industrial é muito provavelmente mais trabalho ao invés de menos”, escreve.

A autossuficiência, idealizada como fuga do sistema capitalista, implica cultivar, construir, consertar, cozinhar; tarefas diárias e manuais que sustentam a própria vida. A utopia de uma vida simples ignora o enorme trabalho invisível que mantém as cidades funcionando: alguém precisa reparar as ruas, remover o lixo, manter a eletricidade, cultivar alimentos.

A verdadeira liberdade, portanto, não é ausência de esforço, mas autonomia sobre o próprio esforço. Poder de decidir o que, como e para quem se trabalha.


3. A Tecnologia: De Promessa Libertadora a Sistema de Controle

Tanto o capitalismo quanto o marxismo partilham um dogma comum: a crença de que a tecnologia nos libertará do trabalho. Schleuning vê nisso um mito moderno de salvação.

A tecnologia, especialmente em larga escala, exige centralização e hierarquia. Sistemas interconectados, complexos e especializados tornam o comando autoritário uma necessidade estrutural.

“O tamanho enorme, a interconexão complexa e a estratificação de tarefas que constituem os sistemas tecnológicos modernos tornam o comando autoritário necessário e a tomada de decisões independente e individual impossível.”

A utopia automatizada (aquela em que as máquinas fariam tudo) pode ser, ironicamente, a forma mais sofisticada de prisão já criada. A questão essencial não é o que a máquina faz, mas quem a controla. Se o trabalho é abolido, o poder não desaparece: ele apenas muda de mãos.


4. O Verdadeiro Inimigo Não é o Esforço, mas a Fragmentação

O que realmente nos oprime não é o ato de trabalhar, mas a forma como o trabalho é estruturado. A “divisão do trabalho”, aperfeiçoada pelo capitalismo industrial e sua administração “científica”, transformou a atividade humana em uma sequência de tarefas minúsculas, mecânicas e desconectadas.

Essa fragmentação destrói a experiência de totalidade. O trabalhador deixa de compreender o processo e de se reconhecer no resultado final. A criatividade é substituída pela repetição; o orgulho, pela alienação.

Esse processo vai além da fábrica: ele se infiltra na vida cívica. O “operário mecânico” dá origem ao “cidadão mecânico”, incapaz de pensar o todo, de ligar meios e fins. Surge então o sujeito politicamente impotente, aquele que “larga tudo”, que não vê conexões entre suas ações e o mundo ao redor.

Schleuning vê nessa mentalidade o reflexo cultural do pós-modernismo: “não há história, não há continuidade, não há responsabilidade.” A sociedade de consumo produz indivíduos fragmentados — peças de uma máquina que ninguém mais compreende.


5. Da Labuta ao Bom Trabalho: Recuperando o Sentido

Aqui está o coração da proposta de Schleuning. O problema não é o trabalho, é a labuta. A labuta é o trabalho sem controle, sem sentido, sem propósito humano. Ela é sub-humana e repetitiva; “estupidifica o espírito e erode os hábitos mentais da atenção e da curiosidade”. É a atividade fragmentada que cria irresponsabilidade e indiferença, transformando seres humanos em extensões de uma máquina.

O bom trabalho, por outro lado, é o que integra corpo e mente, razão e criação. Ele “convoca energias criativas” e oferece um “sentido de conclusão”. Ele é feito para os outros e com os outros, fortalecendo os laços que nos constituem como comunidade.

A diferença entre ambos pode ser resumida assim:

| Característica | Labuta (Trabalho Alienante) | Bom Trabalho (Trabalho Significativo) | | ---------------------------- | --------------------------------- | ----------------------------------------- | | Propósito Principal | Eficiência mecânica, lucro alheio | Contribuição coletiva, realização pessoal | | Impacto no Indivíduo | Estupidifica e aliena | Nutre e integra mente e corpo | | Relação com a Comunidade | Isola e destrói laços | Constrói e fortalece vínculos | | Controle | Externo e fragmentado | Autônomo e consciente |

O bom trabalho é, portanto, uma prática de liberdade e solidariedade. Ele não serve ao lucro, mas ao bem comum. É tanto político quanto espiritual: o ato de fazer algo com propósito e junto a outros é, em si, um gesto de resistência à alienação capitalista.


Conclusão: Da Abolição à Reconstrução Radical

A verdadeira revolução não é abolir o trabalho, mas reconstruí-lo radicalmente. A luta não é contra o esforço, e sim contra a exploração, a fragmentação e a falta de sentido que o transformam em labuta.

Precisamos reivindicar o direito de controlar nosso trabalho, decidir por que e para quem produzimos, e reconstruir o elo entre trabalho e comunidade. Como escreve Schleuning, “nós precisamos de uma reestruturação radical do trabalho, não de sua abolição”.

Isso significa transformar o trabalho de meio de sobrevivência em meio de convivência. Significa trocar o sonho da fuga pelo ato da construção.

A pergunta não é mais “o que você faz?”, mas “o que nós fazemos uns para os outros?”. A liberdade, afinal, não é o descanso eterno; é o exercício consciente de criar, cooperar e sustentar a vida em comum.


Se o trabalho voltasse a ser medido não pelo que acumulamos, mas pelo que contribuímos uns aos outros, por onde começaríamos a mudança amanhã?


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