Para Além de Deus e do Capital: Reapropriar Nossa Potência e Nosso Prazer

Por que criamos deuses? E, depois de criá-los, por que aceitamos que eles nos governem? Esta não é uma questão teológica, mas o cerne de um problema político radical. Dois pensadores, aparentemente distantes, nos dão as chaves para uma resposta devastadora: a religião é uma tecnologia de poder que administra nossos desejos e nosso medo para nos manter obedientes.

O alemão Ludwig Feuerbach e o francês Georges Bataille nunca se encontraram, mas suas ideias, em diálogo, revelam os mecanismos profundos de como nos alienamos — e como podemos nos reapropriar de nós mesmos.

Parte 1: Feuerbach e a Grande Alienação

A pergunta é uma bomba-relógio, silenciosamente enterrada sob os alicerces de toda civilização: por que uma espécie lutando pela mera sobrevivência gastaria suas precárias energias criando deuses?

A resposta, cunhada pelo filósofo alemão Ludwig Feuerbach em sua obra A Essência do Cristianismo, não é um mero argumento ateísta. É uma investigação antropológica radical que expropria Deus das nuvens e o devolve ao terreno da práxis humana, revelando a religião como o mais profundo, complexo e inconsciente ato de autoalienação.

Diferente dos "ateus de butique" de nosso tempo, Feuerbach não queria refutar a fé com escárnio. Seu projeto era mais subversivo: compreendê-la e esclarecê-la. Ele se propôs a ser um "ouvinte e tradutor" da religião, não seu "coveiro". E nessa escuta atenta, ele descobriu que os segredos mais íntimos da humanidade estavam projetados no céu.

A Consciência do Infinito é a Consciência de Nós Mesmos Feuerbach parte de um axioma materialista crucial: os limites do nosso ser são os limites da nossa consciência. Um ser finito não pode conceber o verdadeiramente infinito. Portanto, quando o homem pensa em Deus — este ser infinito, eterno e ilimitado —, ele não está acessando uma realidade externa, mas objetivando a própria infinitude de sua consciência.

A "consciência de Deus" nada mais é do que a autoconsciência do homem. O "conhecimento de Deus" é o autoconhecimento da espécie. A religião é, nas palavras de Feuerbach, o "desvelamento festivo do tesouro escondido do homem". É a maneira pela qual a humanidade, em seu estágio inicial, toma consciência de sua própria essência genérica (Gattungswesen), mas de forma invertida e mistificada.

A Defesa Egoísta contra a Finitude Por que essa mediação é necessária? Porque o indivíduo se sente esmagado por suas limitações. A finitude, a ignorância, a fraqueza são experiências humilhantes. Para se libertar desse fardo, o indivíduo realiza um movimento duplo e alienante:

Nega-se a si mesmo: Ele projeta tudo o que há de melhor e mais potente em si — seu amor, sua justiça, sua sabedoria, seu poder — em um ser exterior, divino. Quanto mais ele se empobrece, mais enriquece a Deus.

Reafirma-se através do Outro: Essa auto-negação não é desinteressada. É um investimento. Pois quanto mais poderoso for Deus, mais esse poder poderá ser usado em favor do homem. Deus torna-se o garantidor da salvação, o consolador dos oprimidos, o justiceiro dos humilhados. O homem nega-se para, em seguida, reivindicar para si, através de Deus, tudo o que renunciou — e até mais, com "juros e correção", em outra vida.

Aqui reside o egoísmo profundo da religião. A prática religiosa, portanto, não é altruísta. É uma troca econômica: "Eu te dou minha autonomia e minha razão, e em troca você me garante felicidade e salvação eternas". A linguagem religiosa inverte a atividade em passividade: o homem reza e pede, como um súdito passivo, para receber de volta, como um favor divino, aquilo que é originalmente seu.

A Espiral Alienante: O Preço da Fé Essa dinâmica cria uma espiral recessiva. Para manter a ilusão, Deus precisa se tornar cada vez mais poderoso e transcendente, o que, por sua vez, exige que o homem se torne cada vez mais fraco e dependente. A religião, então, opera como uma droga que exige doses cada vez mais fortes: quanto maior a crise material, maior o fervor religioso, maior a alienação.

O exemplo dos monges é paradigmático: a renúncia ascética aos prazeres terrenos não é uma negação do prazer, mas seu adiamento e amplificação. A gratificação é meramente deslocada no tempo (para o céu) e no espaço (para outro mundo). É o ápice do cálculo egoísta: trocar um prazer finito por um êxtase infinito.

Parte 2: Bataille e a Represa dos Desejos

Se Feuerbach nos mostra para onde foi nossa potência, Bataille, em O Erotismo, mostra para onde foram nossos desejos mais obscuros.

Com a pergunta que soa como um escândalo aos ouvidos modernos, puritanos e dessublimados: o que o êxtase sagrado de um misticismo arcaico tem a ver com o arquejar profano de um corpo em êxtase?

A resposta, de Georges Bataille, é simples e devastadora: tudo.

Num mundo onde a esquerda se apega a análises materialistas rígidas — por vezes economicistas — e a direita se agracia com uma moralidade castradora, a obra de Bataille surge como um raio. Um pensador maldito, excêntrico, que operava nos porões da psique coletiva, longe das "panelinhas" filosóficas de seu tempo, mas cuja profundidade foi reconhecida por gigantes como Foucault e Derrida.

Seu projeto era ambicioso: investigar as fundações psíquico-simbólicas da civilização, aquele estrato obscuro e negligenciado que fica entre a economia política e a psicologia individual. É na sua obra magna, O Erotismo, que ele desnuda os mecanismos pelos quais a sociedade humana, essa frágil barreira contra o caos, gerencia os excessos monstruosos que a fundam e que ameaçam destruí-la a todo momento.

A Represa e a Enchente: Interdito e Transgressão Bataille parte de uma premissa freudiana, mas a leva a consequências radicais. A civilização, enquanto ordem produtiva, só é possível através da instauração do Interdito. Este não é uma mera proibição moral, mas uma estrutura segregadora fundamental que opera como uma represa psíquica. Seu papel é conter, administrar e canalizar as pulsões mais profundas e perigosas do animal humano: a violência, a sexualidade desregrada, o horror perante a morte e nosso ímpio desejo de autodestruição.

O Interdito é o que nos tira do reino da natureza, que para Bataille é um reino de excesso e devoração cega. É ele que nos permite construir a "sociedade do trabalho", organizada, previsível. Mas aqui está o paradoxo dialético batailleano: a represa não existe sem a enchente. O interdito, ao conter, gera um excedente de energia libidinal e negativa. Essa pressão não pode ser contida indefinidamente; ela precisa transbordar.

É aí que entra a Transgressão. Diferente da mera "violência" natural, a transgressão é o transbordamento ritualizado, sociabilizado e simbólico. Não é a quebra catastrófica da represa, mas a abertura calculada de suas comportas. A sociedade, em sua sagacidade perversa, não suprime seus demônios; ela cria válvulas de escape programadas para liberá-los de forma controlada, evitando assim uma explosão verdadeiramente catastrófica.

A história humana é a história da oscilação entre esses dois polos: o Trabalho (o interdito, a acumulação, a razão) e a Festa (a transgressão, o gasto improdutivo, o excesso).

Religião e Erotismo: As Duas Faces do Mecanismo E o que são, então, a religião e o erotismo? São os dois sistemas simbólicos mais poderosos já criados para orquestrar essa economia do interdito e da transgressão.

A Religião como Válvula de Escape: Os rituais religiosos arcaicos — os sacrifícios — são a chave. O sacrifício de um animal (ou de um deus, como no cristianismo) não é sobre "matar o mal". Pelo contrário, é sobre realizar simbolicamente o mal que há em nós. A violência contida na comunidade é canalizada para um bode expiatório, um corpo que pode ser devorado, destruído e consumido coletivamente em um ritual. A crucificação de Cristo, reatualizada na missa, é o exemplo supremo: a comunidade testemunha e celebra um ato de extrema violência para, através dessa representação, expurgar sua própria pulsão de morte. A religião administra o interdito da morte e da violência.

O Erotismo como Jogo Transgressivo: Da mesma forma, o erotismo não é a mera "libertação sexual". É o complexo sistema simbólico que permite flertar com os interditos sexuais sem realizá-los plenamente em sua forma aterrorizante. O fetiche, a fantasia, o jogo de dominação e submissão — tudo isso são citações controladas e consentidas de pulsões profundas e muitas vezes "assustadoras". O erotismo é a ritualização da transgressão sexual, a válvula de escape que permite o extravasar da libido contida pela moral social, mantendo a estrutura produtiva intacta.

Religião e erotismo são, portanto, faces da mesma moeda: sistemas de mediação que, ao mesmo tempo que definem o que é proibido, criam os caminhos sagrados e profanos para sua transgressão temporária e ritualizada.

Parte 3: A Síntese - A Projeção Divina como Fonte da Alienação Erótica

Proponho aqui uma síntese entre Ludwig Feuerbach e Georges Bataille, ancorada na premissa de que a criação de Deus, tal como delineada por Feuerbach, não é apenas uma alienação da potência humana, mas o solo fértil de onde brota o erotismo batailleano — um erotismo que, paradoxalmente, permanece aprisionado pela mesma estrutura teológica que o engendra. Essa ligação revela não apenas os mecanismos de autoengano da espécie, mas também as vias subterrâneas para uma reapropriação radical de nossa essência erótica e produtiva.

A Projeção Divina e o Vazio que Ela Cria Feuerbach, em A Essência do Cristianismo, desvela a religião como o ato primordial de alienação antropológica. Deus não é uma entidade transcendente, mas a projeção objetivada das qualidades mais nobres e infinitas da humanidade: amor, justiça, sabedoria, poder ilimitado. Ao externalizar essas potências em uma figura divina, o homem realiza um movimento duplo de empobrecimento e investimento egoísta. Ele se nega a si mesmo — transferindo sua infinitude para o céu — para, em troca, reclamar de volta, sob a forma de graça ou salvação, aquilo que era originalmente seu.

Essa separação não é inocente; ela é uma defesa contra a finitude, uma estratégia para mitigar o horror da limitação mortal. Aqui reside o cerne da alienação: o homem se divide em dois — o finito e dependente versus o infinito e autônomo — criando uma clivagem interna que o mantém subjugado. Deus, como projeção do "bom" em nós, nos limita ao nos separar de nossa própria potência. Somos esvaziados para encher o divino, e nessa troca econômica dissimulada, perdemos a autonomia para uma obediência que mascara nosso desejo de plenitude. A religião, assim, não é mera ilusão; é uma tecnologia de poder que administra o medo e o anseio, perpetuando uma espiral onde quanto mais nos humilhamos, mais nos tornamos dependentes.

O Eros Aprisionado: Fruto da Separação É precisamente dessa clivagem feuerbachiana que irrompe o erotismo de Bataille, como exposto em O Erotismo. Se Feuerbach nos mostra como projetamos o "bom" para o alto, criando uma separação que nos aprisiona, Bataille revela que essa mesma separação gera um excedente de energia libidinal — os desejos "obscuros" que não cabem na projeção divina idealizada. O interdito, essa represa psíquica instaurada pela civilização (e, por extensão, pela religião como seu pilar simbólico), contém não apenas a violência e a morte, mas também a sexualidade desregrada, o excesso que ameaça dissolver a ordem produtiva.

O erotismo, para Bataille, nasce como uma transgressão ritualizada dessa separação: ele é o transbordamento controlado das pulsões que a projeção divina reprime. Enquanto Deus incorpora o "bom" projetado (a pureza, a eternidade, o amor assexuado), o erotismo absorve o resíduo — o profano, o corporal, o devorador. Mas eis o aprisionamento: o erotismo não é livre; ele é moldado pela ideia de Deus. A religião, como válvula de escape batailleana, orquestra a transgressão através de rituais sagrados que flertam com o erótico (pense no êxtase místico, na crucificação como espetáculo de violência consumida coletivamente). O sagrado e o profano são faces da mesma moeda: o interdito divino cria o tabu sexual, e a transgressão erótica é permitida apenas como uma "festa" temporária, um gasto improdutivo que reforça, em vez de destruir, a represa.

Assim, o erotismo de Bataille é filho bastardo da alienação feuerbachiana. Da separação entre o homem finito e sua potência infinita projetada em Deus, surge um vazio que o desejo erótico preenche — mas aprisionado, ritualizado, sempre à sombra do divino. O prazer não é autêntico; é uma citação controlada do excesso, uma fantasia que simula a transgressão sem arriscar a dissolução total. O monge ascético de Feuerbach, que adia o prazer para o céu, ecoa no erotismo batailleano como o jogo de dominação que flerta com a violência sem consumá-la: ambos são cálculos egoístas, trocas onde o homem renuncia ao imediato por um êxtase mediado e ampliado.

Por que Isso Importa para a Esquerda Radical?

A crítica de Feuerbach e Bataille é um convite para irmos além das análises superficiais. Ela nos força a olhar para o que há por baixo do político e do econômico, revelando a alienação e a repressão como pilares fundamentais da nossa civilização. Suas obras, em diálogo, oferecem ferramentas preciosas para a esquerda radical.

A Crítica da Alienação é a Chave Feuerbach nos mostra que a alienação religiosa é o modelo de todas as formas de alienação. A mesma lógica de projetar nossa potência em um Outro — seja Deus, o Estado, o Capital ou o Mercado — e depois nos submetermos a ele, é a base da nossa subserviência. A crítica da religião é, portanto, o "prolegômeno de toda crítica", como diria Marx. Ela nos ensina que o céu foi nossa primeira forma de propriedade privada: a propriedade de nossa própria essência, alienada e vendida de volta para nós como mercadoria celestial. A tarefa revolucionária é desalienar o divino e devolver à humanidade a posse de si mesma.

A Luta é pelo Terreno Material da Esperança A religião prospera porque oferece consolo para uma vida de sofrimento real. Combater a religião, portanto, não é apenas desmascarar sua ilusão, mas tornar sua promessa desnecessária. A verdadeira "salvação" só virá quando criarmos um mundo onde a miséria, a injustiça e a finitude não precisem ser compensadas por um paraíso imaginário. O objetivo final não é simplesmente abolir Deus, mas reapropriar-se coletivamente dos predicados humanos alienados. É reconhecer que todo o amor, poder e sabedoria que atribuímos a divindades são, na verdade, potências nossas, da espécie humana, e que devem ser reivindicadas para a transformação radical deste mundo.

Para Além do Moralismo e da Sociedade do Trabalho A análise de Bataille é uma ferramenta preciosa para sairmos da análise meramente econômica. Ele nos mostra que a sociedade produtiva é fundada na repressão e no gasto improdutivo controlado (a festa, a guerra, o sacrifício). Uma verdadeira revolução não pode ser apenas sobre quem controla os meios de produção, mas sobre quem controla as válvulas de escape. Uma política de esquerda que se limita ao moralismo e ao puritanismo está fadada ao fracasso. Ela ignora que as pulsões humanas não desaparecem com um decreto; elas buscam saídas, e se não forem canalizadas de forma emancipatória, serão capturadas pela direita, que sabe muito bem manipular o desejo, o medo e o ódio em seus rituais políticos modernos.

A Força dos Símbolos A luta de classes não se dá apenas na fábrica, mas no imaginário. As classes dominantes sempre controlaram os rituais de transgressão (o carnaval, as festas religiosas, a pornografia) para manter o status quo. Compreender a economia libidinal por trás disso é essencial para uma contra-hegemonia que não seja apenas racional, mas que também fale à nossa psique mais profunda.

Bataille e Feuerbach nos lembram que a civilização é um projeto frágil, construído sobre um abismo de excesso e violência. Ignorar essa dimensão obscura, seja em nossa análise política ou em nossa prática revolucionária, é condenar-nos a repetir seus mecanismos de opressão, mesmo com novas roupagens. A verdadeira libertação talvez comece quando ousarmos olhar nos olhos do que há de mais terrível dentro de nós e, em vez de simplesmente interditar, imaginar novas formas de gastar, de gozar e de viver – sem controle, sem culpa e sem donos.


Categorias deste post: