A Dialética da Dominação: Adorno, Horkheimer e a Crítica Anarquista ao Esclarecimento

Esta obra, escrita sob as sombras da Segunda Guerra Mundial e do horror nazifascista, é um dos ataques mais ferinos e densos contra a racionalidade dominante que já foram produzidos no século XX.

1. O Contexto: Escrevendo nas Entranhas da Besta

Adorno e Horkheimer escreveram a Dialética do Esclarecimento entre 1941 e 1944, exilados nos EUA, enquanto a Europa ardía em chamas. Eles não eram anarquistas — eram marxistas heterodoxos, críticos, desiludidos com a trajetória da esquerda tradicional e com a falência da revolução. Sua pergunta era incisiva: como o projeto iluminista — que prometia liberdade, razão e emancipação — degenerou em barbárie totalitária?

A resposta deles é perturbadora: a semente da dominação já estava plantada no próprio conceito de "esclarecimento".

2. A Tese Central: O Esclarecimento como Mito da Dominação

O Iluminismo prometeu libertar a humanidade dos mitos, da superstição e da servidão. Mas Adorno e Horkheimer argumentam que, ao fazer isso, ele criou um novo mito: o mito da razão como instrumento de controle.

A ânsia de dominar a natureza — incluindo a natureza humana — transformou a razão em ferramenta de opressão. Não se trata mais de libertar, mas de administrar, categorizar, controlar. A razão instrumental não pergunta "por que?", mas "como?". Como dominar melhor? Como produzir mais? Como normalizar, vigiar, conformar.

E aqui, ecoa Bakunin:

"A liberdade sem socialismo é privilégio; o socialismo sem liberdade é escravidão."

O projeto iluminista, ao se aliar ao capital e ao Estado, tornou-se socialismo sem liberdade — ou pior: capitalismo com máscara de progresso.

3. O Mito de Odisseu: A Auto-Dominação como Fundação da Civilização

Um dos momentos mais brilhantes do livro é a análise do mito de Odisseu. Para resistir ao canto das sereias, Odisseu se amarra ao mastro do navio — e aos seus homens, tampa os ouvidos com cera. Ele nega sua própria natureza, sua curiosidade, seu desejo, em nome da "sobrevivência" e do "controle".

Adorno e Horkheimer veem nisso a metáfora fundadora do sujeito moderno: nós internalizamos a dominação. Não precisamos mais de capatazes — nós mesmos nos vigiamos, nos controlamos, nos negamos.

Isso não lembra a auto-gestão da servidão que criticamos? A ideia de que a liberdade é perigosa? Que precisamos de amarras — leis, moral, Estado — para não "nos perdermos"?

Isso é a domesticação em estado puro.

4. A Indústria Cultural: A Cultura como Arma de Massificação

Aqui a crítica é direta e atualíssima. A "indústria cultural" não é apenas entretenimento — é o mecanismo pelo qual a dominação se torna prazerosa. Netflix, Amazon, Hollywood, Spotify — tudo isso é parte de uma máquina que fabrica desejo, formata subjetividade e vende ilusão de escolha.

O que é oferecido como "livre arbítrio" é na verdade um cardápio controlado. Você pode escolher entre 50 séries, todas com a mesma estrutura narrativa, os mesmos valores, a mesma lógica consumista. Você acha que está relaxando, mas está sendo treinado — para consumir, para obedecer, para desejar o que não precisa.

Isso não é cultura — é condicionamento. E como anarquistas, rejeitamos qualquer forma de condicionamento.

5. O Antissemitismo e a Lógica do Extermínio

Adorno e Horkheimer não veem o antissemitismo nazista como um "acidente" ou um "retrocesso". Eles o entendem como o produto lógico da razão instrumental. O mesmo pensamento que categoriza, que exclui, que objetifica a natureza e os corpos, também categoriza pessoas como "inimigas", "impuras", "descartáveis".

O antissemitismo moderno é a face mais perversa da dominação: a que transforma seres humanos em objetos a serem eliminados em nome da "pureza" ou da "eficiência".

E isso não morreu com Hitler. Vive nas deportações em massa, na xenofobia, na lógica do "nós contra eles" que sustenta Estados e fronteiras.

6. A Regressão do Indivíduo: Quando o Sujeito é Esvaziado

Se não temos tempo para nós mesmos, se nosso ócio é colonizado pelo consumo, se nosso pensamento é formatado pela mídia — onde está o sujeito autônomo? O indivíduo que o Iluminismo prometeu foi substituído por um consumidor, um espectador, um funcionário da própria servidão.

A regressão não é um acidente — é um projeto. Pessoas infantilizadas, despolitizadas, entretidas até a morte — como diria Neil Postman — são mais fáceis de governar.

Conclusão: Desmontar a Máquina Dialética do Esclarecimento não é um livro otimista. Ele não oferece soluções fáceis. Mas é uma ferramenta afiada para quem quer entender como a dominação funciona em nível profundo — inclusive dentro de nós.

Como anarquistas, podemos extrair disso uma lição crucial: Não basta lutar contra o Estado ou o Capital. Precisamos lutar contra a internalização da dominação. Precisamos desaprender a obedecer.

A liberdade não será dada — será tomada. E isso exige autocrítica, descondicionamento e a coragem de ouvir o canto das sereias — sem amarras.


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