O Baile de Máscaras do Capital: sobre a tragédia de entrar no jogo para mudá-lo

A aposta de subverter o sistema por dentro ignora uma verdade fundamental: o jogo não se vence, ele transforma o jogador. Esta é a anatomia de uma armadilha política, onde a máscara se torna o rosto e a revolução, um ato no espetáculo.

A Máquina de Subjetividades

Há uma imagem persistente em certa esquerda: o revolucionário que atravessa as portas do Estado para, de dentro, implodi-lo. É uma fantasia perigosa. Dispositivos de poder (no sentido foucaultiano) não são espaços neutros a serem ocupados; são máquinas que produzem subjetividades. Quem se senta à mesa do jogo burguês, por mais radical que prometa ser, consente em jogar. E o jogo tem regras mais profundas do que o regimento parlamentar: ele fabrica o próprio tipo de sujeito apto a permanecer no salão.

Uma democracia burguesa pode funcionar como máquina de moer subjetividades. O tirano não tem rosto; manifesta-se na estrutura que condiciona condutas, afetos e imaginações. Ingressar nesse dispositivo é submeter-se a uma lógica antagônica ao projeto de emancipação. A promessa de “entrar sem máscara” cai diante da regra tácita do baile: ninguém cruza a porta de cara limpa sem, cedo ou tarde, aceitar a máscara que viabiliza sua permanência.

Não se trata de moralizar “traições” individuais. O problema é ontológico e estrutural. Ao ocupar cadeiras, microfones e holofotes do liberalismo, militantes radicais produzem uma simetria devastadora: legitimam as regras do jogo que pretendem negar. Se prosperam dentro do arranjo, a mensagem pública torna-se ambígua e desmobilizadora: “o sistema é uma prisão. Mas vejam como se pode vencer por dentro”. O efeito espetacular é imediato (Debord): a crítica é metabolizada como “contestação permitida”, convertida em mercadoria simbólica, enquanto a teologia da prosperidade e o coaching consagram a vitória individual como rota de fuga.

A burocracia é a paciência institucionalizada dessa máquina. Ela não precisa quebrar vontades; apenas aguarda. Corrói como ferrugem: desgasta promessas, reconfigura prioridades, administra cansaços. Não há “boa consciência” capaz de vencê-la (Marx e Engels já notaram o autoencanto moral como armadilha). O dispositivo não se limita a receber sujeitos; ele os fabrica. Daí a contradição inescapável de “vencer o jogo jogando pelas regras”: quanto mais êxito performativo, mais abstrata parece a tirania aos olhos do público.

Isso nos devolve à política sob chave trágica (Nietzsche). Processos retornam; instituições repetem seus próprios destinos. Qual é a garantia de que a próxima revolução, o próximo programa, não sucumbirá à mesma tragédia? Não há garantias. A vontade de potência, lida em chave materialista, não é bravata, mas potência criativa de instituir valores — exatamente aquilo que a máquina busca canalizar para reproduzir-se. Ao aderir ao jogo, tende-se a abdicar da invenção de um novo. A ousadia é domesticada pelo pragmatismo eleitoral; o desejo de transformação, transmutado em gestão técnica do status quo.

Um erro recorrente de leituras ortodoxas é subestimar a inteligência popular. As pessoas sabem que o sistema é tirânico e sabem, ao mesmo tempo, que revoluções cobram um preço alto e incerto. O “cálculo do estômago” não é cegueira; é racionalidade material. Por isso, a promessa de emancipação mediada por aparatos que exigem máscaras encontra ceticismo: a experiência cotidiana reconhece a paciência do capital e seu hábito de vencer por desgaste.

A alternativa não é o abstencionismo moralista nem a fantasia schmittiana de uma guerra de “amigo/inimigo” com alvos palpáveis. O inimigo estrutural não veste uniforme; o espetáculo oferece bodes expiatórios justamente para desviar o olhar da engrenagem. Também não é “um mais forte”. O culto ao moralmente forte só reforça o circuito do ídolo; figura perfeitamente integrável ao palco que finge contestar. Sem criatividade política, sem novas formas de sociabilidade e cooperação, não há saída: apenas reposição de peças.

Aqui, outra chave útil: jogo (Flusser). Todo jogo funciona porque limita jogadas; sua combinatória é vasta, mas finita. “Jogar melhor” dentro do mesmo tabuleiro não altera o tabuleiro. O trabalho histórico que interessa é inventar um jogo novo: regras, papéis, símbolos e mitos capazes de deslocar o horizonte do possível. Mitos, aqui, não são ídolos; são narrativas fundadoras que reorganizam desejos, dignidade e laços coletivos. Isso nasce nos interstícios: fábricas, quebradas, sindicatos, ocupações, associações de bairro, cooperativas, redes de cuidado. Espaços onde a vida pulsa e pode instituir regras próprias.

Pensar tragicamente não é derrotismo. É recusar o léxico empresarial do “investimento de si” que mede toda ação pelo saldo de curto prazo. Na ética trágica, a dignidade está na luta; inclusive quando a estrutura promete esmagar. Persistir não como culto à derrota, mas como prática que abre fendas de possibilidade e acumula formas de vida capazes de sobreviver à paciência do inimigo. A paciência do capital é longa; a nossa precisa ser inventiva.

Conclusão

O que nos interessa não busca erguer um paraíso final nem um novo sistema totalizante para tomar o lugar do antigo. Não há “lado de fora” absoluto do poder; há fendas, brechas, platôs temporários onde outras lógicas podem florescer. A aposta não é numa Grande Revolução redentora, mas numa multiplicidade de insurreições cotidianas e moleculares que corroem, por dentro e por perto, as engrenagens da captura. Não se trata de “libertar” uma natureza humana reprimida, mas de criar condições para que novas subjetividades, novas éticas e novas formas de alegria possam emergir e se conectar. Não sairemos do baile de máscaras para um mundo sem máscaras; aprenderemos, em comum, a compor nossos próprios bailes (com outras músicas, outras regras, outros ritmos) em espaços-tempos autônomos e fluidos. Liberdade não é destino; é prática contínua de deserção e criação, aqui e agora.

Por isso, a tarefa não é desenhar um mapa perfeito para só então habitá-lo: é habitar o presente de forma diferente. A libertação não virá como evento único, mas como processo sem fim de instituir espaços, afetos e relações que escapem (ainda que parcialmente) à lógica do Estado e do Capital. Trata-se de guerrilha cotidiana: não um exército unificado marchando a um palácio de inverno, mas múltiplos corpos, em seus territórios, recusando a captura e experimentando formas de vida que valham a pena viver. A fuga não é para “outro lugar”; é para outra intensidade. Não há ponto final de vitória; há a prática irredutível da liberdade.


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