Desmistificando "Sobre a Autoridade": Uma Resposta Anarquista a Engels

Um texto curto, escrito há quase 150 anos, continua a ser um dos pilares da crítica marxista ao anarquismo e uma justificativa para as estruturas autoritárias que viriam a definir o "socialismo realmente existente". "Sobre a Autoridade", de Friedrich Engels, é um texto astuto, mas fundamentalmente falho, que confunde coordenação com autoridade e, ao fazê-lo, abre as portas para a perpetuação da dominação, mesmo sob uma suposta bandeira socialista. Como anarquistas, não nos calamos perante essa confusão. É hora de desmontar seus argumentos e reafirmar nossa visão de uma sociedade livre.

Engels e a Confusão Fundamental: Autoridade vs. Organização

O cerne do argumento de Engels é que a indústria complexa e a cooperação em larga escala tornam a "autoridade" não apenas inevitável, mas desejável. Ele usa exemplos vívidos: uma fábrica de fiação, uma ferrovia, um navio. Em todos os casos, ele conclui que é necessária "uma vontade dominante" para evitar o caos.

Aqui, Engels comete seu primeiro e mais crucial erro: ele equipara organização técnica e coordenação voluntária com autoridade política e hierarquia coercitiva.

Nós, anarquistas, nunca nos opusemos à organização. Pelo contrário, somos seus maiores defensores. O que nos opomos é à organização baseada na coerção, na imposição vertical e na alienação do poder de decisão.

Na fábrica de Engels: Os operários decidem, em conjunto, o horário de trabalho. Ótimo! Isso é autogestão. O problema surge quando Engels assume que, para resolver "problemas de detalhe", a única solução é a "decisão de um delegado" à qual todos devem se submeter "autoritariamente". Por que não um conselho de operários? Por que não a rotação de funções? Por que a solução deve ser sempre uma vontade dominando todas as outras? Engels apresenta um falso dilema: ou o despotismo da hierarquia capitalista, ou o caos. A autogestão horizontal e federativa é a alternativa que ele ignora ou descarta.

No navio em alto mar: Este é seu exemplo mais forte, mas também o mais enganoso. Sim, em uma situação de perigo iminente, a ação rápida e coordenada é vital. Mas a pessoa que grita "Vire o leme à estibordo!" não está exercendo autoridade política; está exercendo liderança técnica baseada em conhecimento e experiência reconhecida pelos outros. A tripulação não obedece cegamente a um "delegado" investido de poder coercitivo; eles seguem uma instrução específica porque compreendem a necessidade coletiva daquele comando específico. Assim que a crise passa, a relação horizontal pode e deve ser restabelecida. Engels transforma uma exceção emergencial em regra para toda a organização social.

Engels imagina que, para evitar desastres, é necessária “uma vontade dominante” que regule todos os detalhes. Mais uma vez, ele confunde cooperação técnica com autoridade política. Sim, o funcionamento de um trem exige coordenação e precisão: horários definidos, funções bem distribuídas, comunicação clara entre maquinistas, operadores de trilho e passageiros. Mas nada disso requer uma hierarquia coercitiva. Os trabalhadores da ferrovia podem eleger e revogar comitês de coordenação a qualquer momento, podem rodiziar funções administrativas e podem manter assembleias para discutir horários e protocolos de segurança. O maquinista não é um “chefe político”: ele exerce uma função técnica reconhecida e validada por seus companheiros. O passageiro que respeita as instruções de segurança não o faz porque teme a força de uma autoridade, mas porque reconhece a racionalidade coletiva de regras decididas em comum. Engels reduz a questão a um dilema simplista: ou obediência cega a uma “vontade dominante”, ou caos. O que ele ignora é a possibilidade de autogestão ferroviária, que a história posterior mostrou ser perfeitamente viável: ferrovias e transportes coletivos já foram geridos por sindicatos e conselhos de trabalhadores, funcionando com eficiência sem patrões ou burocratas do partido. O que garante a segurança não é a submissão hierárquica, mas a responsabilidade coletiva.

A Revolução Autoritária: A Semente do Novo Estado

A parte mais perigosa do texto é a defesa de Engels da revolução como "a coisa mais autoritária que existe". Ele defende que o partido vitorioso deve "manter esse domínio pelo terror" sobre os reacionários.

É aqui que a divergência deixa de ser teórica e se torna existencial. Para os anarquistas, os meios determinam os fins. Uma revolução que se baseia na imposição violenta de uma vontade sobre outra, na centralização do poder e no "terror" (uma palavra que a história do stalinismo tornou terrivelmente profética), não pode jamais levar a uma sociedade livre. Ela só pode criar uma nova classe dominante: a burocracia do Partido-Estado.

A Comuna de Paris, que Engels cita de forma oportunista, não era um governo autoritário. Era a negação do Estado. Era a classe operária armada, organizada de baixo para cima em federações de associações livres. Se ela falhou, não foi por "não se ter servido bastante" de autoridade, mas justamente por não ter sido suficientemente revolucionária ao expropriar o capital e esmagar o Estado burguês de Versailles de forma federativa e horizontal.

Fontes para uma Releitura Anarquista:

Para contrapor à visão engelsiana, podemos nos voltar a uma rica tradição de pensamento:

  • Mikhail Bakunin: Em obras como "Estatismo e Anarquia" e "Deus e o Estado", Bakunin debate diretamente com Marx e Engels. Sua crítica principal é profética: a "ditadura do proletariado" se tornaria a ditadura sobre o proletariado por uma nova elite intelectual e burocrática. Ele defende a auto-emancipação das massas através de sua própria organização autônoma.
  • Piotr Kropotkin: Em "A Conquista do Pão" e "Campos, Fábricas e Oficinas", Kropotkin demonstra concretamente como uma sociedade complexa pode se organizar sem Estado. Ele enfatiza a ajuda mútua, a cooperação voluntária e a capacidade da tecnologia, se apropriada coletivamente, de simplificar a produção e torná-la gerível por associações livres de produtores.
  • Errico Malatesta: Em inúmeros panfletos como "Anarquia" e "Entre Camponeses", Malatesta é claro e direto. Ele distingue perfeitamente entre a influência natural do conhecimento e a autoridade imposta pela força. Defende que a organização anarquista deve ser livre, temporária e baseada no pacto voluntário, não na delegação permanente de poder.
  • A Prática Histórica: A Revolução Anarquista na Ucrânia (1918-1921) sob Nestor Makhno e a Revolução Espanhola de 1936 são exemplos concretos de como indústrias, ferrovias e comunidades inteiras foram coletivizadas e autogeridas por conselhos de trabalhadores, operando com eficiência notável sem patrões ou um estado centralizado.

Por Autonomia, Não por Autoridade

Engels tinha um objetivo: defender a necessidade de um partido centralizado para liderar a revolução. Seu texto é uma peça de propaganda política, não uma análise científica imparcial. Ao confundir deliberadamente a necessidade de coordenação com a suposta necessidade de autoridade coercitiva, ele justifica a perpetuação das relações de dominação, apenas trocando o nome do dominador.

Nós, anarquistas, rejeitamos essa equação. Acreditamos na capacidade das pessoas comuns de se auto-organizar, de cooperar voluntariamente e de resolver seus problemas coletivamente sem a necessidade de um mestre – seja ele um capitalista, um burocrata ou um "delegado" do partido com autoridade "científica".

A verdadeira libertação não vem da obediência a uma nova autoridade, por mais "revolucionária" que ela se intitule, mas da destruição de todo princípio de autoridade e da construção, desde já, de relações sociais baseadas na autonomia, na ajuda mútua e na livre associação.

A luta não é entre autoridade e caos, como Engels quer nos fazer crer. É entre autoridade e liberdade. E nós sabemos de que lado estamos.


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