Carl Gustav Jung é, sem dúvida, uma das figuras mais intrigantes da psicologia moderna. Seu trabalho atravessa o inconsciente coletivo, os arquétipos, o processo de individuação, e influencia não apenas a clínica, mas também a arte, a religião e a cultura popular. Mas me pergunto: à luz de uma perspectiva libertária, o que se esconde nas entrelinhas da obra de Jung?
A ideologia — nesse léxico específico — não é uma simples coleção de ideias ou um sistema neutro de crenças. Ela é um aparato, um dispositivo de dominação simbólica e material. Uma máquina engenhosa criada para garantir que o explorado não apenas aceite sua exploração, mas a defenda como se fosse parte da ordem natural das coisas. É, nesse sentido, o ferramental da burguesia para mascarar a realidade da luta de classes.
O debate parece inofensivo: "Dói mais ser traído por alguém do mesmo sexo ou do sexo oposto?"
Mas por trás dessa pergunta aparentemente banal, esconde-se uma estrutura carcomida: a lógica da propriedade privada aplicada aos corpos femininos.
Quando um homem diz que seria "pior" se sua companheira o traísse com outro homem, ele não está falando de amor, nem de dor afetiva genuína. Está falando de perda de controle sobre um corpo que acreditava possuir. É sobre posse ferida, não sobre coração partido.
“Certo. Então todo mundo odeia trabalho.”
Com essa frase direta, a pensadora Neala Schleuning abre seu texto “A Abolição do Trabalho e Outros Mitos” com um diagnóstico brutalmente honesto. A aversão ao trabalho parece ser um traço quase universal. Sonhamos com um futuro livre de obrigações, um mundo em que máquinas realizem todo o esforço e possamos viver no ócio — o eterno sonho do gafanhoto libertado da disciplina da formiga.
Mas Schleuning nos convida a olhar para esse desejo com desconfiança. E se essa fantasia de “libertação pelo ócio” for, na verdade, uma armadilha? E se o verdadeiro caminho para a liberdade não estiver na abolição do trabalho, mas em sua transformação radical — na retomada de seu sentido humano, comunitário e criativo?
O que ela propõe é uma virada de perspectiva: não fugir do trabalho, mas recuperar o controle sobre ele. Este ensaio explora as ideias mais provocativas de Schleuning, articulando-as em torno de uma distinção crucial — a diferença entre a labuta e o bom trabalho. A partir dessa chave, compreenderemos por que o problema não é o esforço em si, mas o sistema que o esvazia de sentido.
O sistema prisional não existe para "reabilitar" ou "proteger a sociedade" — ele é uma máquina de controle social e exploração econômica. O chamado Complexo Industrial Prisional (CIP) revela como o Estado e o capital se beneficiam do encarceramento em massa, transformando corpos marginalizados em mercadoria.
Se há um conceito psicanalítico que ecoa como uma navalha na carne da experiência cotidiana, esse conceito é o gozo em Lacan. E não é à toa que ele é um dos mais discutidos e debatidos na psicanálise: ele revela algo profundamente incômodo sobre nós mesmos e sobre o mundo em que vivemos.
O conceito de psicopolítica, desenvolvido por Byung-Chul Han – notadamente em sua obra homônima Psicopolítica: Neoliberalismo e Novas Técnicas de Poder – não é apenas uma atualização da biopolítica foucaultiana para a era neoliberal. É a descrição precisa do mecanismo de controle mais eficaz já concebido: aquele em que o indivíduo é simultaneamente carrasco e vítima, vigilante e prisioneiro. Para uma perspectiva anarquista, esta análise não é apenas pertinente; é um chamado à desobediência e à ação direta.
A religião é um fenômeno quase universal na história humana, presente em praticamente todas as culturas e sociedades. No entanto, uma minoria significativa de pessoas — os ateus — não sente a necessidade de acreditar em um Deus tradicional ou em qualquer força sobrenatural que explique a origem do universo. Por que essa diferença? Seriam os ateus mais inteligentes, mais esclarecidos ou psicologicamente mais maduros? Ou há algo mais profundo, talvez biológico, que explica essa divergência? Morton Hunt, em seu texto As Raízes Biológicas da Religião, explora essas questões, oferecendo uma análise fascinante sobre as origens evolutivas da religião e as possíveis razões pelas quais os ateus são diferentes da maioria da humanidade.
A tradição da Teoria Crítica, inaugurada pela Escola de Frankfurt, legou ao pensamento radical um diagnóstico insuperável das patologias da modernidade. Desde a sua formulação programática, ela assumiu um compromisso explícito com a emancipação humana — a busca por uma sociedade livre da dominação. Contudo, esse mesmo rigor analítico a conduziu a um impasse filosófico, uma aporia que limitou sua capacidade de articular uma práxis transformadora concreta.
O cerne dessa paralisia reside na "Dialética do Iluminismo". Adorno e Horkheimer observaram um paradoxo aterrador: o projeto iluminista, que visava libertar a humanidade da superstição através da Razão, forjou, ao contrário, novas e mais eficientes formas de barbárie. A origem dessa tragédia foi localizada na relação primordial de dominação da humanidade contra a natureza. Para sobreviver, a espécie desenvolveu uma atitude objetificadora, uma "razão instrumental" focada unicamente no cálculo, controle e dominação. O problema, como a história demonstrou, é que essa lógica não se limita a rios e florestas; ela se volta para dentro, transformando-se em dominação social. A razão, despojada de valores, torna-se uma mera ferramenta para atingir fins, quaisquer que sejam. Nas palavras sombrias de Adorno, "nenhuma história universal leva da selvageria ao humanitarismo, mas há uma que leva do estilingue à bomba de megatoneladas".
Este texto argumenta que, enquanto a Teoria Crítica forneceu o diagnóstico definitivo da dominação pela razão instrumental, é o anarquismo social que oferece a práxis política, a visão construtiva e a base ética necessárias para superar essa aporia, movendo o projeto emancipatório do pessimismo analítico para a transformação concreta.
A diagnose de Byung-Chul Han é precisa como um bisturi e, para nós, anarquistas, profundamente familiar em sua descrição do sintoma, ainda que radicalmente divergente em sua prescrição. Han identifica com clareza a mutação do poder disciplinar descrito por Foucault – a sociedade do “não”, da norma, da interdição e do confinamento – para a sociedade de rendimento do “sim”. Uma sociedade que já não precisa de um tirano externo, pois cada indivíduo se tornou o capataz de si mesmo.
Este é o triunfo final e mais perverso da biopolítica: a internalização completa do mecanismo de exploração. O projeto anarquista clássico, centrado na luta contra um opressor identificável – o Estado, o Capital, o Patrão – vê-se diante de um novo e mais insidioso inimigo: o sujeito de rendimento. A liberdade, gritada como mantra pelo neoliberalismo, revela-se aqui em sua nudez obscena: é a liberdade de se explorar até o colapso neuronal. A coerção não desapareceu; tornou-se idêntica à própria noção de liberdade. Este é o cerne da nova servidão voluntária.