"A Mulher é uma Degenerada": 5 Ideias Radicais de uma Feminista de 1924 que Continuam Atuais

1.0 Introdução: Um Título Chocante, Uma Mente Brilhante

Em 1924, a intelectual anarquista e feminista Maria Lacerda de Moura publicou um livro com um título feito para chocar: A Mulher é uma Degenerada. À primeira vista, parece um insulto. Na verdade, era uma declaração de guerra. Moura, uma das mentes mais radicais de seu tempo, não estava atacando as mulheres, mas sim o establishment científico e social que as definia como biologicamente inferiores. Suas armas eram a própria ciência, a lógica e uma coragem intelectual implacável.

Quase um século depois, seus argumentos permanecem assustadoramente atuais. Em uma época em que a autoridade da ciência era quase inquestionável, ela a desconstruiu para expor os preconceitos que a sustentavam. Este artigo explora cinco das ideias mais radicais e contraintuitivas de sua obra esquecida, demonstrando como sua voz ainda ressoa poderosamente em nossos debates contemporâneos sobre gênero, ciência e poder.

2.0 A “Mulher Degenerada” Não Era Insulto, Era “Ciência”

O título do livro era uma citação direta. A frase não foi cunhada por Moura como um insulto, mas como uma apropriação irônica da afirmação de um respeitado psiquiatra da época, Miguel Bombarda. Em sua obra, Bombarda classificou a mulher que buscava independência e desenvolvimento intelectual como um caso patológico, uma "degenerada" que ameaçava a pureza da raça.

A principal batalha de Maria Lacerda de Moura era contra uma estrutura médica e científica que usava sua autoridade para transformar as ambições femininas em doença. Ela citou diretamente o argumento de Bombarda para expor a visão que combatia:

"O mal não seria grande, diz ele, si apenas se tratasse de algumas dezenas de degeneradas mais carregadas, que assim esterilizadas, inutilizariam um elemento de degenerecencia da espécie". "Mas, a propaganda, como as necessidades da existência, arrasta cada vez, maior numero de mulheres; mais um elemento de desfalque na população... mais um elemento para que se ateie o incêndio da degenerecencia..."

Moura, contudo, não se limitou a contestar. Ela virou a acusação de “degenerescência” contra o próprio acusador. Em uma retórica afiada, questionou quem realmente degenerava a espécie: a “meia dúzia de feministas” ou os “milhões de homens que usam e abusam do álcool, da morfina, da cocaína, do ópio, e de vicios inconfessáveis”? Ela foi além, apontando a sífilis como uma praga masculina que corrompia a descendência, tornando o ataque de Bombarda às mulheres intelectuais uma hipocrisia flagrante.

Desafiar o consenso científico com tanta ousadia, usando as palavras do adversário como estandarte e revidando com fogo, exigia uma coragem que poucos intelectuais, homens ou mulheres, possuíam na década de 1920.

3.0 A Ciência da “Inferioridade” Era uma Farsa — e Ela Usou a Própria Ciência Para Provar

Moura desconstruiu a pseudociência com as ferramentas da própria ciência. Um dos pilares da suposta inferioridade feminina era a craniologia, o estudo das medidas e formas do crânio para determinar a capacidade intelectual. Teorias da época afirmavam que crânios masculinos e de "raças superiores" eram maiores e, portanto, mais evoluídos.

Mergulhando nos próprios estudos antropológicos que seus oponentes citavam, Moura expôs meticulosamente suas contradições e vieses. Ela não apenas apontou que as medições frequentemente mostravam que os cérebros de “negras do Dahomey” eram mais pesados que os de muitas mulheres europeias; ela desferiu o golpe fatal ao citar o cientista alemão Ammon, que aconselhava o uso de álcool e devassidão para acelerar o desaparecimento dos “inferiores” braquicéfalos (de crânio largo). Moura, então, triunfantemente lembrou a seus leitores que Kant, Laplace e Voltaire eram todos braquicéfalos. Sua conclusão era clara: as diferenças observadas não eram biológicas, mas sim o resultado direto das condições sociais. Para reforçar seu ponto, ela citou a poderosa conclusão do antropólogo Oliveira Martins:

"...Broca achou, entre os craneos da vala comum e os dos cemitérios dos ricos em Paris, diferenças de capacidade mais graves do que em raças antropologicamente bem distantes: inferir-se-á d'aí que em Paris coabitam duas raças naturaes — a dos pobres e a dos ricos? Não; são apenas, desgraçadamente, duas raças sociaes!"

Este argumento revela de forma brilhante como a ciência foi historicamente usada não para descobrir a verdade, mas para justificar e reforçar preconceitos sociais existentes.

4.0 O Contragolpe Biológico: O Homem é Mais Próximo do Macaco

Moura não apenas se defendeu; ela contra-atacou. Em sua mais audaciosa inversão de papéis, ela usou argumentos biológicos para afirmar que, se um sexo tivesse que ser considerado o "tipo" principal da espécie, seria o feminino. Citando fontes como o Dr. Alexandre Roster, ela argumentou que o óvulo e o embrião feminino são biologicamente mais ricos em matéria nutritiva e representam o núcleo do desenvolvimento humano, enquanto o masculino seria uma "variedade".

Ela foi além, apontando que certas características da fisiologia masculina o aproximavam mais do animal. Citando Roster, ela argumentou que a pélvis masculina ("bassin") se assemelha à dos macacos ("singes") e que o corpo masculino, coberto de pelos, “recorda a besta” ("il rappelle la brute"). Para selar seu argumento com uma frase inesquecível, ela incluiu em seu livro uma carta do cientista Roquette Pinto, que por sua vez citava o psicólogo Havelock Ellis:

A mulher é mais criança e o homem é mais macaco.

5.0 O Primeiro Animal Domesticado Pelo Homem Foi a Mulher

Antes de domar cavalos ou cães, o homem domesticou a mulher. Esta é talvez a metáfora mais potente de Moura para explicar a origem do patriarcado. Ela teorizou que, nos primórdios da humanidade, o homem primitivo, necessitando de ajuda e submissão para suas lutas, subjugou a mulher pela força bruta.

Este processo de "domesticação" a confinou às tarefas da habitação, protegendo-a das lutas do mundo exterior. O resultado, ao longo de milênios, foi a "atrofia" de seu potencial físico e mental por desuso. A mulher se tornou mais frágil e dependente não por natureza, mas por um processo histórico de subjugação deliberada. Moura descreve esse processo de forma contundente:

Distribuiu-lhe as ocupações, exigiu-lhe serviços, tarefas, castigou-a e repetiu o castigo brutalmente até que ella se deu por vencida e começou a admirar a força bruta... Ficou nas habitações, cuidando dos primitivos serviços domésticos e, daí para cá, todos sabem o resultado desse atentado á liberdade feminina...

A força dessa imagem reside em sua capacidade de redefinir a dinâmica de gênero não como um dado biológico, mas como o primeiro e mais fundamental ato de opressão social da história humana.

6.0 Homens Criaram a “Melindrosa” Para Manter o Controle

A feminilidade frívola não é natural; é uma construção social para facilitar o domínio. Moura fez uma crítica afiada ao estereótipo da "melindrosa" — a mulher fútil, dependente e infantil. Ela argumentou que essa figura não era um produto da natureza feminina, mas sim uma criação masculina intencional.

Segundo ela, os homens cultivam "a eterna futilidade do sexo" porque uma mulher preocupada com aparências é mais fácil de dominar. É “mais fácil compra-la com bonbons e rendas e leques e pérolas”. Com sua “alma de sultão”, o homem deseja uma parceira frágil e inconsciente para que ele possa crescer em seu papel de protetor e controlador, ameaçado por uma mulher de força moral e intelectual. Em uma passagem de clareza impressionante, ela expõe essa dinâmica:

O homem lá quer saber de ter para esposa uma mulher de alma incorruptivel? — Não! Ele a deseja sempre com o pé no abismo, deseja-a frágil, inconciente, vigiada, leviana até, para crescer no seu papel de protector, de guarda...

Aqui, um quarto de século antes de Simone de Beauvoir declarar que não se nasce mulher, torna-se, Moura já dissecava os mecanismos sociais—a “eterna futilidade” cultivada—através dos quais esse “tornar-se” era imposto. Sua análise da construção social dos papéis de gênero estava décadas à frente de seu tempo e continua sendo um dos pilares centrais do pensamento feminista até hoje.

7.0 Conclusão: A Luta de Ontem, a Voz de Hoje

As reflexões de Maria Lacerda de Moura, escritas sob o verniz empoeirado de 1924, soam incrivelmente modernas. Ela dissecou o viés na ciência, a construção social do gênero e as raízes históricas da opressão sistêmica com uma ferocidade intelectual que ainda hoje nos desafia. Sua obra nos lembra que a luta contra o preconceito disfarçado de fato científico e contra as expectativas sociais que limitam o potencial humano não é nova.

A pergunta que sua voz nos deixa, ecoando através do tempo, é inevitável: Quase 100 anos depois, até que ponto realmente superamos as pressões sociais e os preconceitos velados que Maria Lacerda de Moura tão ferozmente combateu?


Categorias deste post: